A BNCC E O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA NA EDUCAÇÃO BÁSICA –
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A disciplina de História é fundamental para o processo de
ensino-aprendizagem dos membros de uma sociedade, afinal, o conhecimento do
passado favorece a formação de uma identidade cultural partilhada pelos
habitantes de um território. Com isso, a ideia de nação pressupõe que os
sujeitos tenham práticas e valores sólidos que, ao serem compartilhados,
favorece o desenvolvimento da fraternidade dos cidadãos e assegura que estes
lutem pelo bem-estar de seu grupo e de sua terra. Logo, é interessante que problematizemos
o que passou para entendermos as motivações dos seus usos, visto que os
acontecimentos pretéritos são minuciosamente selecionados para comporem uma
narrativa equilibrada e dotada de sentido, em função dos segmentos envolvidos
em sua escolha, os quais se modificam no tempo e no espaço.
Tal assertiva destaca que a História, seja a disciplina seja a
ciência, é uma construção na qual utilizamos o passado como objeto para
elaborarmos um dito conhecimento histórico. Portanto, a escrita e a pesquisa
históricas não são imparciais, sendo a nossa leitura dos indícios do passado
condicionada pela natureza dos documentos e o nosso contexto social
(GUARINELLO, 2003, p. 43). Nesse sentido, somos facilmente levados a refutar a
máxima de que “contra fatos não há argumentos”, visto que os
“fatos”/acontecimentos históricos são interpretações que criamos daquilo que
passou (ALBUQUERQUE JR., 2007, p. 72-73). É justamente essa característica, por
vezes, fugidia que torna a História interessante e digna de pesquisa, uma vez
que concatenar ideias oriundas de diferentes documentos se assemelha a uma
investigação típica de filmes de espionagem. Esse tipo de equiparação pode
incomodar aos pares, mas aproxima os estudantes do Ensino Básico do
conhecimento histórico.
Contudo, ainda hoje, é muito comum que os jovens mostrem
desinteresse pela História, chegando a questionar a utilidade desta disciplina
(SOUSA, 2020, p. 81). Isso ocorre porque o “pseudo-pragmatismo” que vivenciamos
no ambiente escolar, desde a juventude, parece herdeiro do tecnicismo que
vigorou no Brasil, sobretudo, entre as décadas de 1970 e 1990. Assim, existe a
tendência entre os jovens e os adultos, nos mais variados segmentos de Ensino,
de se interessarem por coisas que sejam “úteis” às suas vidas, fazendo com que
a História não se enquadre nessa categoria. No entanto, diante do que
comentamos anteriormente, seria o conhecimento histórico algo sem utilidade?
Esse tipo de situação ocorre porque a História, sobretudo no
Ensino Básico, ainda é tomada como “mestra da vida”, dotada de pretensões
oraculares, embora a sua análise não precise de uma interpretação meticulosa,
tal como as palavras da pitonisa de Delfos. Ao contrário, esse modelo de
historiografia exige apenas que seja aceita como uma realidade, visto que
descreve “os fatos como ocorreram” – premissa que Borja Antela-Bernárdez (2020,
p. 62) denomina como “maldição de Ranke”. Tal postura afasta os estudantes da
disciplina histórica, culminando na perspectiva de que esta é um aglomerado de
coisas antigas e obsoletas. Entretanto, como havíamos destacado anteriormente,
a História detém uma finalidade político-social e, por meio da consciência
histórica, permite que o sujeito encare a sua existência de maneira crítica,
estabelecendo o sentido de sua experiência no tempo (CERRI, 2011, p. 30).
Portanto, ao almejarmos que os estudantes do Ensino Básico se tornem futuros
cidadãos ativos, aptos a analisarem as circunstâncias para tomarem as melhores
decisões para a sua comunidade, a História deve ser levada a sério e mais
esforços em prol da consciência histórica devem ser realizados.
Características Gerais do Ensino de História no Brasil
Ao pensarmos as reações de muitos estudantes para com o Ensino de
História, notamos que esta é uma herança de seus familiares, em função da
simplificação da História e da Geografia em benefício dos Estudos Sociais. Como
esclareceu Circe Bittencourt (2018, p. 57-58), esta medida desejava frear os
anseios de uma geração, cujas mudanças em ritmo acelerado poderiam transformar
os valores tradicionais de sua existência. No Brasil, os Estudos Sociais foram
implementados durante o governo cívico-militar, por meio da lei 5.692 de agosto
de 1971. Essa postura deve ser pensada em função do contexto nacional e
mundial, uma vez que o Brasil estava alinhado aos interesses capitalistas
norte-americanos, durante a Guerra Fria.
Logo, toda uma geração foi educada por métodos de
ensino-aprendizagem que reforçavam o civismo, através dos feitos dos grandes
homens da pátria. José Antônio Vasconcelos (2012, p. 48-50) expõe que essa
seria uma História Tradicional, marcada pela influência de Leopold von Ranke,
da Escola Metódica e do pensamento positivista, a qual fomentou uma análise
histórica elitista. Conjeturando Borja Antela-Bernárdez (2020, p. 62-93) e José
Antônio Vasconcelos, verificamos que a implementação dos Estudos Sociais no
Brasil, na década de 1970, reforçou os paradigmas de uma História oficial vista
de cima e desenvolvida pelo poder político hegemônico, não cabendo aos estudantes
pensarem sobre o que passou e aceitarem o que viviam. Com isso, os pais e
responsáveis dos nossos estudantes de hoje em dia, ainda acreditam que o
conteúdo de um livro didático é correto e não pode ser refutado, tornando a
História sinônimo de passado e verdade.
Ao lidarmos com a ideia de uma “verdade histórica”, não há sentido
discutirmos em alternativas interpretativas. Contudo, como professores e
pesquisadores, sabemos que a História é composta por interpretações, afinal,
como destacou Leandro Karnal (2015, p. 7-8) não somos capazes de utilizar,
tratar e conhecer todas as informações e indícios do passado, havendo a
necessidade de selecionarmos, recortarmos, dimensionarmos e narrarmos uma
pequena parte daquilo que passou. Carlos Eduardo Campos e Luis Filipe de
Assumpção (2020, p. 261) endossam Karnal ao destacarem que, em virtude dessa
característica da História, o seu processo de ensino-aprendizagem deve ser
pensado e repensado a todo momento, pois as circunstâncias históricas modificam
a interpretação do passado.
Nesse sentido, a História é um processo constante de
(res)significação dos vestígios do passado, tornando a interpretação um processo
fundamental para a produção do conhecimento histórico. Do mesmo modo, se
considerarmos as conquistas historiográficas do século XX, também não
conseguimos produzir uma História que se abstenha de tratar das relações de
poder inerentes à sociedade, reforçando que os grupos se relacionam de variadas
maneiras visando interesses mútuos – o que não se restringe às elites. Dessa
forma, a História Ensinada entre as décadas de 1970 e 1990, já não se adéquam
às necessidades de nossa juventude, marcada pelo aprimoramento tecnológico e a
dinâmica de um mundo informacional globalizado.
A BNCC e o que se espera das Ciências Humanas(?)
Mediante o exposto, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada
em 2017 e publicada em 2018, manifestou o aparente interesse de superar os
estigmas de uma educação voltada para a massificação do conhecimento. Isso
porque, já na sua “Introdução”, temos que o objetivo da BNCC é garantir a
formação humana em sua integralidade, visando uma sociedade mais justa,
democrática e inclusiva – aspecto anteriormente preconizado pelas DCNs (BRASIL,
2018, p. 7). Tal argumentação foi complementada no decorrer de todo o
documento, onde a criança e o jovem devem ser estimulados a serem criativos e
críticos diante das situações que o mundo lhes apresenta. Ainda que a abordagem
seja distinta para cada segmento de ensino, considerando o desenvolvimento
cognitivo dos sujeitos, em função de sua idade, a noção de autonomia do conhecimento
do estudante é uma máxima.
Como a nossa análise se restringiu ao Ensino de História,
observamos que o professor dessa disciplina foi representado como o responsável
por desenvolver nos estudantes essa percepção crítica do mundo. Todavia, ao
analisarmos a BNCC notamos que existe um distanciamento significativo entre uma
postura crítica e os conteúdos pensados para cada segmento do ensino.
No que concerne ao Ensino Fundamental – Anos Iniciais (Fundamental
I), os autores da BNCC afirmam que o contato das crianças com novas tecnologias
de informação torna-as mais criativas, além de promover o pensamento lógico e
crítico (BRASIL, 2018, p. 58). Aqui o texto da BNCC não havia iniciado a sua
caracterização sobre as atribuições curriculares de cada área do conhecimento,
porém, devemos considerar que o uso de novas tecnologias não torna as crianças
mais criativas e críticas. Como destacou Renata Sousa (2020, p. 82) as
facilidades proporcionadas por essas tecnologias fazem, na sua maioria, com que
as crianças percam habilidades manuais e criativas, além da capacidade
interpretativa. É inegável que as tecnologias de informação e comunicação
(TICs) contribuíram sobremaneira para o ensino, mas, acreditarmos que o seu uso
tornará os estudantes naturalmente mais criativos é um equívoco. No geral, o
fato dos jovens se verem constantemente imersos em aparelhos eletrônicos
dispersa a sua intenção, quando alheios a esses ambientes.
Os autores da BNCC chegam a reconhecer que o excesso de interação
dos jovens com as TICs acarreta o imediatismo e a efemeridade das informações.
Retomando Sousa (2020), a facilidade com a qual os jovens obtêm o resultado de
suas pesquisas – “geração Google” – acaba desestimulando a sua busca por
informações, por aprimoramento escolar e intelectual. Portanto, o argumento da
BNCC de que a relação entre tecnologia e ensino acontece de maneira “natural” é
algo que não corrobora as visões acadêmicas sobre o assunto. Dito isso, o
fundamental seria pensarmos o planejamento quanto ao seu uso, em virtude das
características dos estudantes, da escola, do local onde esta se encontra e da
disponibilidade de recursos para a utilização destas tecnologias no processo de
ensino-aprendizagem.
No que concerne às Ciências Humanas, a BNCC destaca que estas contribuem
para o desenvolvimento da cognição e a contextualização da existência, através
das noções de tempo e espaço. Em seguida, os autores reforçam que as Ciências
Humanas favorecem a “[...] crítica sistemática à ação humana, às relações
sociais e de poder e, especialmente, à produção de conhecimentos e saberes”
(BRASIL, 2018, p. 353). Em seguida, ao tratar da passagem do Fundamental I para
os anos finais desta etapa da Ensino Básico, a BNCC pontua que os estudantes
dialoguem com percepções e representações singulares de mundo, as quais
favorecem a comparação para que possamos perceber como cada sociedade
desenvolve a justiça e criam um novo campo republicano de direitos (BRASIL,
2018, p. 354). Nos interessa perceber que o discurso inerente à BNCC culmina em
um viés que representa esse documento como pleno conhecedor dos problemas de
nossa sociedade. No entanto, se compararmos os dois excertos citados, vemos um
generalismo velado, pois embora o sujeito seja crítico, ele deve entender os
“novos campos republicanos do direito”.
A postura empregada pelos autores deste documento, em conformidade
às demandas político-institucionais brasileiras, se insere naquilo que Evgeny
Morozov (2013) definiu como solucionismo. Ao adaptar esse conceito da
arquitetura, Morozov definiu que o solucionismo seria a ideia de que problemas
profundos podem ser solucionados com atividades, práticas e/ou medidas
(eletrônicas, sobretudo), cuja efetividade e o excesso de informações favorecem
a tomada de consciência sobre os problemas vivenciados em sociedade. Portanto,
se existe um problema de conexão entre pessoas que utilizam serviços de compras
e a distância de suas casas, o solucionismo permite que empresas de aplicativos
liguem os usuários com os fornecedores, lucrando com a conectividade e os dados
fornecidos. Entretanto, ainda que esses meios assegurem a resolução do
problema, ele se exime da responsabilidade do insucesso de seu uso, visto que
apenas conectaram necessidades e não se responsabilizaram pelo mal uso do
serviço prometido (MOROZOV, 2013, p. 1-5). O problema do solucionismo lida com
a definição de problema ao invés da solução proposta. Nesse sentido, este
conceito presume os problemas que está tentando resolver, ao invés de
investiga-los, isto é, ele busca a resposta antes que as perguntas tenham sido
formuladas. Assim, a maneira como os problemas são compostos, importa da mesma
maneira como eles serão desenvolvidos (MOROZOV, 2013, p. 6).
Se direcionarmos o conceito de solucionismo à maneira como o
discurso da BNCC representa a educação no Brasil, com ênfase às Ciências
Humanas, temos que o uso de tecnologias capazes de promover a interação dos
estudantes com linguagens e visões de mundo diversas, garantiria um
posicionamento crítico em suas vidas e permitiria o desenvolvimento de uma
sociedade mais justa e igualitária, apta a minimizar preconceitos e injustiças.
No entanto, o uso de TICs não assegura o aprimoramento do ensino e nem mesmo
garante que os sujeitos se tornarão mais conscientes de seu papel no mundo.
Logo, a relação entre tecnologia, educação e melhoria da sociedade foi tomada
de forma causalista, sem considerar as variáveis inerentes ao processo de
implementação de currículos, os quais se dão em virtude das singularidades de
cada instituição escolar.
A BNCC e o Ensino de História Antiga
Se pararmos para pensar essa premissa ao Ensino de História Antiga
na Educação Básica, verificaremos alguns problemas que merecem ser discutidos.
Os autores da BNCC destacam que no 5º Ano do Ensino Fundamental é que os
estudantes serão colocados a pensar a diferença entre povos, culturas e as suas
formas de organização (BRASIL, 2018, p. 404-405). Em seguida, destaca-se que a pólis
representou o aprimoramento do sujeito “tanto do ponto de vista político quanto
ético”. Tal assertiva se mostra problemática e generalista como se – por um
critério evolucionista – todas as comunidades antigas ocidentais se organizaram
no modelo políade. Outra limitação identificada reside na apresentação do termo
no singular – pólis – uma vez que, na Antiguidade helênica muitas foram
as formas de organização política em função do modelo políade.
Ao apresentar as Unidades Temáticas do 5º Ano e os seus
respectivos objetos do conhecimento e habilidades, os autores da BNCC comentam
sobre a Antiguidade já no primeiro item, intitulado “Povos e culturas: meu
lugar no mundo e meu grupo social”. Todos os objetos do conhecimento
relacionados a esse tema são generalistas e causalistas, ou seja, vistos como
etapas anteriores aquilo que o Ocidente se tornará, porém, em uma perspectiva
de causa e efeito. Somado a isso, as habilidades propostas para esses objetos
são anacrônicas para pensarmos a Antiguidade, tal como observamos:
“(EF05HI02) Identificar os mecanismos de organização do poder
político com vistas à compreensão da ideia de Estado e/ou de outras
formas de ordenação social.
(EF05HI03) Analisar o papel das culturas e das religiões na
composição identitária dos povos antigos.
(EF05HI04) Associar a noção de cidadania com os princípios
de respeito à diversidade, à pluralidade e aos direitos humanos”
(BRASIL, 2018, p.415 – grifo nosso).
Na primeira habilidade citada, em função da Antiguidade, o
conceito de Estado é tomado de forma generalista. Posto que entre os
especialistas de Antiguidade clássica, a noção de Estado – atrelada à
centralidade política dos governos modernos e vinculada à ideia de direito –
não se adéqua à organização política do mundo antigo em função de suas
características sociais, culturais e econômicas. Na segunda habilidade,
afirma-se que as comunidades antigas se organizaram em função de suas culturas
e religiões, o que afasta as sociedades modernas de paradigmas semelhantes. A
adjetivação dos povos como antigos nos permite considerar uma gradação
comparativa entre o que era feito e aquilo que fazemos no presente, estando
essa concepção do sagrado alinhada à secularização. Já na terceira habilidade o
problema reside nos direitos humanos, os quais se associam ao pensamento
europeu moderno – partindo de Locke e culminando na Revolução Francesa. Com
isso, conceitos e ideias contemporâneas foram atribuídas ao mundo antigo sem o
devido cuidado, o que pode acarretar problemas de interpretação em momentos
futuros.
Via de exemplo, se afirmamos que na Antiguidade haviam “direitos
humanos”, como justificar a escravidão como base da produção econômica de
diversas regiões mediterrânicas? Do mesmo modo, como afirmar que somente os
antigos organizaram as suas cidades em função do sagrado se, no Brasil do
século XXI, uma das maiores bancadas políticas reside nos grupos religiosos? Ou
mesmo, como falar em Estado na Antiguidade, quando a noção de direito –
atrelada a um código legal – não era percebida nos moldes ocidentais contemporâneos?
Dessa maneira, é possível que esse descuido generalista e causalista tenha se
dado pela falta de especialistas em História Antiga no tratamento dessas
temáticas, junto a BNCC. Afinal, é comum aos especialistas da área o cuidado em
lidar com certos conceitos aplicados ao mundo antigo, e quando necessitam
empregar ideias e valores de outras épocas fazem as devidas ressalvas.
No momento em que se inicia a exposição do conteúdo de História
para o Fundamental – anos finais, os autores destacam que o enfoque residirá
nos acontecimentos históricos importantes para o Ocidente, o que não corrobora
à tentativa de lidar com a diversidade, tal como se expôs no conteúdo do
Fundamental I (anos iniciais). Como a Antiguidade clássica é discutida no 6º
Ano, o seu conteúdo integra as seguintes Unidades Temáticas: “A invenção do
mundo clássico e o contraponto com outras sociedades” e “Lógicas de organização
política”. Em seus respectivos Objetos do Conhecimento, a Grécia é tratada como
uma unidade política e territorial, o que se materializa nas Habilidades
EF06HI10 e EF06HI12, onde temos:
“(EF06HI10) Explicar a formação da Grécia Antiga, com ênfase na
formação da pólis e nas transformações políticas, sociais e culturais.
(EF06HI12) Associar o conceito de cidadania a dinâmicas de
inclusão e exclusão na Grécia e Roma antigas” (BRASIL, 2018, p. 421).
As Habilidades em questão não se preocupam em reforçar que o
número de póleis catalogadas até hoje é superior a mil. Para tanto, se
torna evidente que em uma Grécia/Hélade que carecia de uma unidade
político-territorial a probabilidade de que todas as cidades tivessem o mesmo
modelo de organização política é praticamente zero. Do mesmo modo, ainda que
tenham vivenciado transformações em suas estruturas, a singularidade de seus
habitantes e de suas culturas inviabilizava processos idênticos entre as póleis.
Essa leitura pode ser realizada à questão da cidadania, uma vez que cada cidade
detinha critérios próprios para a assegurar a condição de cidadãos aos seus
membros.
Em certa medida, o tratamento dado a esses conceitos pela BNCC
pretende fomentar a consciência dos sujeitos acerca da diferença política e
cultural entre a Antiguidade e a Contemporaneidade. Ainda assim, em função do
ideal de respeito e diminuição das diferenças, parece que estudar sobre outras
formas de organização social, discutindo problemas e situações, tornaria os
estudantes conscientes de seu papel social. Nesse sentido, a BNCC adota uma
postura solucionista pautada em uma lógica de causa e efeito, na qual discutir
política torna o estudante politizado, analisar diferenças quanto à cidadania
levaria o jovem a lutar por direitos sociais etc. Em suma, o generalismo e a
simplificação de processos está propensa a reforçar preconceitos, ao invés de
combate-los. Isso porque o anacronismo nas definições e interpretações de mundo
submete culturas e comunidades separadas de nossa sociedade no tempo e no
espaço, aos pressupostos e exigências do mundo contemporâneo.
No Ensino Médio, em função dos Itinerários Formativos, os eixos
temáticos acabam se tornando mais fluidos, se comparados ao Ensino Fundamental.
Por outro lado, o generalismo se acentua quanto à percepção da política na
Antiguidade e a sua relação com o Ocidente contemporâneo. Ao apresentarem a
categoria Política e Trabalho, os autores afirmam que:
“[...] a política está na origem do pensamento filosófico. Na
Grécia Antiga, o exercício da argumentação e a discussão sobre os destinos das
cidades e suas leis estimularam a retórica e a abstração como práticas
necessárias para o debate em torno do bem comum” (BRASIL, 2018, p. 567 –
grifo nosso).
Novamente, a Grécia é tomada como uma unidade, cuja organização
política foi idêntica em todas as póleis, por meio da argumentação e da
discussão dos interesses da maioria dos cidadãos. Essa é uma premissa
“atenocêntrica” que considera a democracia como forma majoritária de governo na
Antiguidade grega/helênica. Tal postura não coaduna os indícios literários
antigos, visto que a democracia foi criticada por diversos pensadores – como o
“Velho Oligarca”, Xenofonte, Platão, Antístenes etc. – e esteve longe de ser
hegemônica entre as póleis.
Por fim, os autores se utilizam de um posicionamento solucionista
para endossar o aprendizado da democracia pelos estudantes do Ensino Médio:
“A política, em sua origem grega, foi o instrumento
utilizado para combater os autoritarismos, as tiranias, os terrores, as
violências e as múltiplas formas de destruição da vida pública” (BRASIL,
2018, p. 567).
Nos chama a atenção a ideia de que os estudantes, por discutirem
sobre a política grega – nesse caso, ateniense – seriam capazes de se tornarem
tolerantes para com a opinião do outro, respeitosos para com visões de mundo
diferentes e conscientes de que somente um posicionamento democrático poderia
acabar com as injustiças do mundo. Esse tipo de pensamento é preconceituoso,
ainda que não explicite que a democracia é a forma de política grega apresentada,
posto que nem todas as localidades do mundo contemporâneo veem a democracia
como algo benéfico para as suas culturas e sociedades. Do mesmo modo, se
conhecer sobre a democracia tornasse as cidades menos autoritárias e violentas,
não estaríamos vivendo um caos político-social e sanitário no Brasil, afinal,
por termos sido criados em uma República de matriz democrática, deveríamos
estar à beira do “Nirvana” e não do caos que temos presenciado.
Considerações parciais
Como as discussões deste texto pretendem iniciar análises, muitas
questões ainda merecem ser discutidas. Ainda assim, o estudo desenvolvido nos
ajuda a perceber que os desafios para com a educação se iniciam na sala de
aula, mas não serão resolvidos unicamente nela. Do mesmo modo, verificamos a
discrepância entre o discurso da BNCC – que pretende fomentar a percepção
crítica da realidade, além do respeito à diversidade e o combate às injustiças
– e a maneira como os seus conteúdos foram sistematizados – ou seja, de modo
generalista, taxativo e Ocidental. Nesse sentido, a tecnologia se tornou uma
“muleta” na qual devemos nos apoiar para fomentar uma educação de qualidade,
porém, esta é um instrumento que está longe de nos fornecer soluções para os
problemas que existem em nosso sistema educacional. Observamos também que, na
maioria dos casos, os autores adotaram posturas solucionistas, as quais sugerem
mecanismos para sanar uma limitação, mas não se preocupam em resolver o
problema em sua essência. Entretanto, devemos recordar que a BNCC fornece
parâmetros para se pensar o currículo, algo que não inviabiliza uma postura
distinta do professor em sala de aula, dotado de um planejamento contundente,
em função das características de suas turmas e escolas.
Referência biográfica
Dr. Luis Filipe Bantim de Assumpção é Professor Adjunto I da
Universidade de Vassouras, campus de Maricá, no curso de Pedagogia, Coordenador
de Doutorado Local em História na Universidade de Vassouras, em parceria com a
UNISINOS e possui Pós-doutorado em Letras Clássicas pelo PPGLC-UFRJ. Assumpção
também é Professor da Educação Básica na rede particular de ensino no Município
do Rio de Janeiro.
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Boa- tarde, professor Luís Filipe!
ResponderExcluirUm dos primeiros textos lidos foi o seu artigo. Parabéns!!! Justamente porque trabalho com a disciplina e, infelizmente, não consigo até hoje estar de bem com a BNCC! Realmente, concordo com diversos pontos salientados: o distanciamento entre conteúdos e o saber reflexivo dos educandos não há, até porque impera uma cobrança das coordenações pedagógicas acerca do PLANEJAMENTO DIÁRIO! Isso subentende-se, correr com os objetos do conhecimento porque a unidade avança; certos conteúdos foram BANIDOS! Haja vista, da História Oriental. Procurei no 6º ano, a Pérsia, a Índia e a China...não encontrei!O Egito, está bem rasteiro. Destacaram logo, Grécia e Roma! Outrossim, as TICs, bastante enfatizadas e as EDITORAS (boa parte) se aproveitando, criando programas para dar aulas, fazer atividade diversas,etc. Escrever com a caneta, está virando piada, exemplo( Professora, é obrigatório escrever? E digitado?) O livro didático? Pobre livro, escanteado gradativamente, porque o SENHOR GOOLE é o sabe- tudo como você bem sinaliza. Questões subjetivas, temas polêmicos a serem discutidos, são respondidos sem nexo, não respondem ou plageiam trechos do GOOGLE! E com certeza, é o imediatismo de pensar no achar tudo fácil! Enfim, em meio há tanto códigos de COMPETÊNCIAS E HABILIDADES,nós da área das Humanas, precisamos fazer um certo jogo de cintura ao ministrar as aulas, porque deixar de lado o que interessa a é um ser pensante, torna os "sujeitos de direito", soldadinhos da continência e não jovens e adultos que "pularão os muros acadêmicos" para irem às ruas, às vielas, às favelas, aos palácios, cobrarem seus direitos de forma consciente e crítica! O tecnicismo voltou com tudo...a BNCC deixa perceptível!
Olá Ivanize,
ExcluirAgradeço o interesse e as gentis palavras ao texto.
De fato, não temos muito o que discutir sobre o que você declarou, afinal, quem trabalha na "linha de frente", isto é, a sala de aula, sabe as limitações que vivenciamos somadas à cobranças indevidas e excessivamente burocráticas. Acredito que, mais do que nunca, Another Brick in the Wall esteja se fazendo presente em nosso cotidiano.
Grande abraço e aproveite o evento,
Prof. Dr. Luis Filipe de Assumpção
Bom dia! Parabéns pelo texto. Excelente reflexão sobre a 'nova' proposta do ensino de história, tratada como uma versão. Ao meu ver, como professora da educação básica e pesquisadora, considero que a BNCC não abarca a proposta de tratar o ensino de história como uma ciência que comporta versões. As propostas apresentadas pela BNCC ainda são limitadas e limitantes. Face a isso e a sua excelente reflexão do texto gostaria que refletíssemos: como aliar o enquadramento às BNCCs e a formação crítica do aluno do ensino básico para que possa encarar o ensino de história da sala de aula apenas como uma versão dos fatos?
ResponderExcluirFábia Núbia Moura e Silva
Olá Fábia,
ResponderExcluirBoa tarde. Agradeço a pergunta e o interesse.
Sinceramente, eu penso que a melhor escolha seja promover uma introdução teórica aos pressupostos da Análise do Discurso - em conformidade ao desenvolvimento cognitivo dos estudantes. Isso nos permitirá dialogar com os "não-ditos" e ainda empregar os textos didáticos formalizados pela BNCC como instrumentos para fomentarmos uma análise crítica de seu conteúdo.
Caso queira um maior desdobramento, por favor, traga a sua posição quanto a isso.
Grande abraço,
Prof. Dr. Luis Filipe de Assumpção
Boa Tarde Luis, excelente artigo. Citando seu texto,
ResponderExcluirSe direcionarmos o conceito de solucionismo à maneira como o discurso da BNCC representa a educação no Brasil, com ênfase às Ciências Humanas, temos que o uso de tecnologias capazes de promover a interação dos estudantes com linguagens e visões de mundo diversas, garantiria um posicionamento crítico em suas vidas e permitiria o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária, apta a minimizar preconceitos e injustiças. No entanto, o uso de TICs não assegura o aprimoramento do ensino e nem mesmo garante que os sujeitos se tornarão mais conscientes de seu papel no mundo. Logo, a relação entre tecnologia, educação e melhoria da sociedade foi tomada de forma causalista, sem considerar as variáveis inerentes ao processo de implementação de currículos, os quais se dão em virtude das singularidades de cada instituição escolar.
Considero que você foi preciso, seguramente a tecnologia por si só é capaz de aprimorar o ensino ou a capacidade crítica dos alunos. Parece ser mais uma nova tentativa de contornar deficiências estruturais do sistema educacional brasileiro com reformas inócuas pois não modifica o essencial. Tendo sido implementado o BNCC por um governo comprometido com uma certa visão de mundo, a colocação da tecnologia como algo capaz de assegurar de forma causalista um aprimoramento forte do ensino não estaria encobrindo intenções inconfessáveis, e inversas ao que afirma o documento, qual seja, implementar um ensino não crítico, reprodutor, e garantidor, do status quo dentro e fora das escolas?
Alexandre Black de Albuquerque
Olá Alexandre,
ExcluirBoa noite. Agradeço o interesse e as gentis palavras.
De fato, a tecnologia e o conhecimento são implementados em função dos grupos e governos hegemônicos, de tal maneira que promovam o status quo que almejam.
Entretanto, o que me chama a atenção é justamente pensar que muitos estabelecimentos de ensino empregam a tecnologia como sinônimo de inovação e percepção crítica da sociedade. Logo, temos um desserviço a favor de uma lógica de mundo bastante evidente e que tende a agradar à maioria dos consumidores do ensino.
Grande abraço,
Prof. Dr. Luis Filipe de Assumpção
Parabéns pelo texto Luis!
ResponderExcluirTenho duas perguntas.
1) No seu texto você faz uma longa crítica ao uso exagerado das TICs pelos alunos (que desestimularia sua criatividade e sua curiosidade). Mas como você acha que essas tecnologias podem ajudar os professores no ensino de história? elas seriam positivas ou negativas?
2) Eu sinto que um dos maiores déficits nos currículos e propostas de ensino de história é a quase ausência de conteúdos sobre teoria e metodologia de história. Você acha que com o acrescimento desses conteúdos, essas perspectivas anacrônicas, essa visão teleológica da história e, principalmente, a ideia de "história mestre da vida" seriam superadas?
Abraços
João Pedro Barros Guerra Farias
Olá João Pedro,
ExcluirAgradeço o interesse e a gentileza. Responderei as perguntas na numeração que foram feitas.
1)Aqui o planejamento do professor é fundamental para que possamos utilizar devidamente às TICs, afinal, elas estão presentes na escola e na vida dos estudantes. No entanto, o professor deve demonstrar que o uso da tecnologia não será uma brincadeira, pois haverá objetivos a serem alcançados e conhecimentos a serem produzidos. Portanto, nós temos o potencial para tornarmos o uso de TICs muito positivo nas escolas.
2)Entenda que, nas escolas, não estamos querendo formar pequenos historiadores. Entretanto, eu mesmo promovo debates e introduzo os temas em função da tendência historiográfica, levando os estudantes a perceberem a intencionalidade dos materiais didáticos. Ainda que seja uma alternativa, não esqueça que eles já carregam o estigma familiar de que História é decoreba e um aglomerado de velharias. Sendo assim, nós podemos suscitar a perspectiva crítica e torcer para que eles a aprimorem depois que estiverem voando sozinhos.
Grande abraço,
Prof. Dr. Luis Filipe de Assumpção
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ResponderExcluirBoa noite!
ResponderExcluirOlá professor Luís Filipe, parabéns pelo texto, excelente!
A didática do professor devido as temáticas, é uma importante ferramenta, a BNCC organizam de uma forma diferentes, será que esses conteúdos sejam adequados?
Olá Rosangela,
ExcluirBoa tarde. Agradeço o interesse e as palavras gentis.
Vou tentar responder o que eu entendi. A didática é sempre um instrumento efetivo para a atuação em sala de aula, ainda que seja um processo de amadurecimento e aprimoramento constante. Nesse sentido, somente o esforço pessoal e a dedicação poderá favorecer o desenvolvimento didático do professor.
De fato, devemos desenvolver um "arsenal" didático para lidar com as mais variadas temáticas e com a singularidade de cada turma com a qual nos deparamos.
Contudo, a BNCC não está interessada em discutir essas questões e acredito que esse não seja o papel dela. Entretanto, a BNCC é fruto de seu tempo e das relações que a nossa sociedade tem estabelecido nos últimos anos, enfatizando a importância de um neotecnicismo atrelado à globalização. Logo, os conteúdos da BNCC atendem às demandas específicas de grupos específicos, o que pode entrar em conflito com a didática e a postura do professor em sala de aula, bem como à crença da capacidade transformadora da educação.
Dito isso, os conteúdos da BNCC são adequados para o seu próprio interesse.
Cordialmente,
Prof. Dr. Luis Filipe Bantim de Assumpção
Boa noite Prof Luis Filipe, tudo bem? Gostaria de parabenizá-lo pela sua comunicação. Atualmente sou aluna de mestrado e estudo sobre o ensino de História, por esta razão, seu texto me foi de grande importância.
ResponderExcluirMesmo acreditando que foram superamos alguns esteriótipos sobre História Antiga, mas precisamente a grega, que é minha área, percebo que na verdade muitos desses conceitos ainda estão enraizados de forma velada, a exemplo, a noção de atenocentrismo, como você descreveu.
A partir do que foi exposto no texto, qual ponto você considera primordial ser mudado na BNCC acerca do Ensino de História Antiga? E como nós professores de História podemos agir para que possamos dinamizar o ensino/aprendizagem de História Antiga, desenvolvendo as habilidades pretendias mas sem promover anacronismos ?
Naiana Correia Machado
(naiana31@hotmail.com)
Boa noite Prof Luis Filipe, tudo bem? Gostaria de parabenizá-lo pela sua comunicação. Atualmente sou aluna de mestrado e estudo sobre o ensino de História, por esta razão, seu texto me foi de grande importância.
ResponderExcluirMesmo acreditando que foram superamos alguns esteriótipos sobre História Antiga, mas precisamente a grega, que é minha área, percebo que na verdade muitos desses conceitos ainda estão enraizados de forma velada, a exemplo, a noção de atenocentrismo, como você descreveu.
A partir do que foi exposto no texto, qual ponto você considera primordial ser mudado na BNCC acerca do Ensino de História Antiga? E como nós professores de História podemos agir para que possamos dinamizar o ensino/aprendizagem de História Antiga, desenvolvendo as habilidades pretendias mas sem promover anacronismos ?
Naiana Correia Machado
(naiana31@hotmail.com)