Luciano Araujo Monteiro

 

O DECLÍNIO DA FIGURA DO SOLDADO CIDADÃO ROMANO E O AUMENTO DA ATIVIDADE COMERCIAL COMO UM ESTIMULANTE AO CRESCIMENTO DE ROMA


 

Introdução

O objetivo deste estudo está em fazer uma análise do desenvolvimento comercial romano, ao ter por base a visão do jurista Cícero (romano) tendo em vista que, paralelamente, houve a diminuição de um contingente armado valorizado por este advogado, conhecido por soldado cidadão, que, embora não fizesse parte de um exército regular, este personagem atuava em momentos de crise, com o intuito de defender as fronteiras de Roma, tendo por recompensa o espólio obtido junto aos povos vencidos. Um fato que tornava esse personagem mais leal ao seu general que permitiu tal ação do que ao próprio Senado Romano. Conforme afirma Kenneth Minogue:

 

“Os romanos pensavam na sua cidade como uma família e no seu fundador Rômulo como o ancestral comum a todos. [...] Enquanto os gregos foram teóricos brilhantes, inovadores, os romanos foram agricultores-guerreiros sérios e prudentes [...]” (MINOGUE, 2008, p. 29-30).

 

Para tornar este estudo possível também foram utilizadas análises do já falecido historiador Moses I. Finley, estabelecendo um contraponto com o conhecimento divulgado na obra didática: “Projeto História Araribá – 5ª série”. Trata-se de uma obra que compõe um conjunto de quatro livros escolares, produzidos com utilização de dinheiro público, com intuito de atender as diretrizes do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD: 2008, 2009, 2010), contudo, o material voltado à quinta série foi o escolhido como fonte de análise por trabalhar a Antiguidade Clássica no processo de ensino e aprendizagem de História.

 

Este trabalho tem por objetivo refletir sobre a seguinte inquirição:  -Por que Cícero faz um contraponto entre os lados bom e ruim do comércio?

 

Também é um objetivo adicional apresentar alguns aspectos que caractezaram o modelo de escravidão romana.

 

A questão militar e o avanço comercial

O livro II de: “Da República” é uma obra atribuída a Marco Túlio Cícero, personagem histórico que viveu entre 106 a.C. e 43 a.C. Dentre suas atribuições, podemos destacar as funções de: filósofo, orador, escritor, advogado e político. Cícero viveu no contexto da crise da República Romana (momento em que existiu forte aversão, por parte dos romanos, das ideias monárquicas), chegando a acompanhar o período do Primeiro Triunvirato, formado por Júlio César, Pompeu e Crasso, ou seja, momento em que Roma é governada por três generais.

 

O trecho de sua obra, escolhido como objeto de análise, aborda questões positivas e negativas relacionadas ao comércio marítimo, realizado por Roma. Seu texto fala das mudanças provocadas pelo comércio marítimo, pois, se por um lado houve a troca de produtos e de linguagem entre diferentes povos, por outro, existiu a alteração dos costumes locais, conforme mostra a citação:

 

São também frequentes, nas cidades marítimas, a mudança e a corrupção dos costumes, pois os idiomas e comércios estranhos não importam unicamente mercadorias e palavras, mas também costumes, que tiram estabilidade às instituições dessas cidades” (CÍCERO, Da República, II, 4).

 

Este autor faz uma crítica aos negócios marítimos, devido ao desejo de enriquecimento dos cidadãos romanos, lembrando que estes passaram a deixar de lado a preocupação de defender a cidade contra qualquer invasão. Desse modo, a imagem do soldado cidadão passou a perder força, assim como a necessidade de cultivar os campos. Com base na defesa, realizada por este político, justificando a importância da existência do soldado cidadão, torna-se imperativo lembrar que Cícero foi influenciado intelectualmente por Políbio (historiador grego que viveu entre 203 a.C. - 120 a.C.), sendo que este expôs em sua obra: “História”, a importância desse comprometimento do homem de Roma, em tempos de guerra, estabelecendo um contraponto entre as tropas cartaginesas, compostas por mercenários e as romanas, constituídas por nativos da cidade. Enquanto estas lutavam com tremenda determinação para expulsar o inimigo, aquelas se comportavam de forma contrária:

 

“Quanto às diferenças de detalhes, como, para começar, a conduta na guerra, os cartagineses são naturalmente muito superiores no mar, seja em eficiência, seja em equipamento, pois a navegação era de longa data sua ocupação nacional, e eles se dedicam às atividades náuticas mais que qualquer outro povo; quanto ao serviço militar em terra, todavia, os romanos são muito mais experientes, pois eles dedicam realmente todas as suas energias a praticá-lo, enquanto os cartagineses descuidam-se da infantaria embora deem alguma atenção à cavalaria. A causa disso é que as tropas empregadas são constituídas de estrangeiros servindo como mercenários, ao passo que as dos romanos se compõem de habitantes de seu território e de cidadãos. Sendo assim, também a esse respeito devemos afirmar que o sistema político dos romanos é superior ao de Cartago, porquanto os cartagineses dependem sempre de forças mercenárias para a preservação de sua liberdade, enquanto os romanos contam com seu próprio valor e com a ajuda de seus aliados. Consequentemente, mesmo quando de início sofrem um revés os romanos se reabilitam da derrota com uma vitória final, ao passo que com os cartagineses acontece o contrário. Os romanos, combatendo por sua pátria e por seus filhos, nunca podem deixar arrefecer o seu ardor marcial, e lutam continuamente com todo o seu ânimo até sobrepujar o inimigo. A consequência dessa diferença é que, embora, como eu já disse, os romanos sejam menos experientes em assuntos navais, eles são geralmente bem-sucedidos no mar graças à bravura de seus homens, pois apesar de o preparo nas atividades navais ser importante, e não pouco, é principalmente a coragem dos marinheiros que faz a balança pender para a vitória” (POLÍBIO, História, VI, 1996, p. 344).

 

Minogue também aborda em seus estudos o desvirtuamento dos costumes romanos, à medida que Roma prosperava:

 

“Naqueles tempos iniciais, predominava o amor pela pátria, mas aos poucos o sucesso e a riqueza começaram a corromper os romanos, que então caíram sob o domínio de formas despóticas de ordem que antes achavam repugnantes. A virtude e a liberdade declinaram juntas. Foi a literatura romana, especialmente a obra de Cícero, que persuadiu posteriormente os europeus de que a virtude era a condição da liberdade” (MINOGUE, 2008, p. 34).       

 

Ao pensar no ensino de História, o livro didático analisado nos apresenta, de forma resumida, que o regimento era composto, em sua maioria, por pequenos agricultores, sendo que, os postos de comando eram ocupados por membros do patriciado, ou seja, da elite agrária, assim como menciona: “A obrigação do serviço militar estendia-se dos 17 aos 46 anos de idade e uma das maiores recompensas era o espólio obtido nas guerras. Somente em 111 a.C., o exército passaria por grandes modificações” (PROJETO ARARIBÁ HISTÓRIA, 2006, p. 187). Trata-se de um momento em que Roma começou a criar exércitos regulares e profissionais, a fim de dar prosseguimento ao seu expansionismo territorial, sendo que, seus membros passaram a receber uma remuneração fixa.

 

Marco Túlio Cícero expõe seu descontentamento com a decisão tomada pelo governo de Roma de extinguir a figura do soldado cidadão, ao mesmo tempo em que este jurista enfatiza que o comércio levava as pessoas à preguiça, todavia, Cícero também deixa explícita a ocorrência de certo dinamismo na cidade, por apresentar a importância da importação e da exportação, utilizando Rômulo como exemplo, que fundou Roma junto ao rio Tibre. Desse modo, a posição geográfica da cidade de Roma surge como um forte estimulante às trocas pelo mar, como podemos constatar na citação abaixo:

 

“Que pôde fazer, pois, que Rômulo aproveitasse todas as vantagens das cidades marítimas, evitando ao mesmo tempo seus perigos? Construiu sua cidade nas margens de um rio cujas águas profundas se esparramam no mar por uma larga desembocadura, procurando assim uma comunicação fácil no curso do rio Tibre, não só para proporcionar ao novo povo tudo quanto necessitava, como também para levar para longe o que tivesse de mais; uma rota natural para tirar do Oceano todos os objetos necessários ou agradáveis à vista e fazê-los chegar às regiões mais afastadas” (CÍCERO, Da República, II, 5).

 

Embora Roma tivesse sido fundada nas proximidades do rio Tibre, era preciso que houvesse o controle do comércio através do mar Mediterrâneo. Fato que culminou no conflito bélico entre Roma e Cartago, cidade fundada por Fenícios. Mesmo este episódio sendo primordial, por marcar a vitória romana e o grande expansionismo desse Estado, ele é mencionado de forma resumida, ocupando apenas uma página no livro didático analisado, o que pode diminuir sua importância perante o aluno menos atento (PROJETO ARARIBÁ HISTÓRIA, 2006, p. 188).

 

A escravização imposta pelos romanos

Salvioli defende a ideia de que o escravo romano foi à primeira mercadoria a ser comercializada (FINLEY, 1991, p. 46). A obra de Finley também menciona a existência dos “companheiros de trabalho”, expressão que se refere ao serviço realizado em conjunto, isto é, entre o proprietário e o cativo, lembrando que aquele tirava seus rendimentos por meio do próprio trabalho, além de parte do ganho que seria destinado a seu escravo e que não deixava de ser um dinamizador da economia romana. Ademais, a escravidão, apesar de ser um regime que envolvia altos custos, era propiciada pela existência de fontes de abastecimento. Além disso, na Antiguidade Clássica, não houve o aspecto da cor, que diferenciava o cativo de seu senhor. Ao contrário da época Moderna, no contexto da escravidão indígena e africana. Assim, após duas gerações, o estigma da escravização Antiga desaparecia perante os descendentes de pessoas que foram submetidos a ela, marca que continuava com os afrodescendentes (FINLEY, 1991). Todavia, ao voltarmos para a análise da obra didática escolhida, torna-se notória uma contradição, pois, se por um lado é transmitida no texto didático a existência de muitos escravos, adquiridos como prisioneiros de guerra (PROJETO ARARIBÁ HISTÓRIA, 2006, p. 190), por outro ponto, é apresentada na mesma página uma breve afirmação, destacada num boxe: “Essa perspectiva tem sido hoje revista. No caso do Império Romano, estudos recentes têm mostrado que a escravidão foi predominante apenas em algumas regiões (sobretudo na Península Itálica)” – (PROJETO ARARIBÁ HISTÓRIA, 2006). Embora essa informação esteja em destaque, não há menção às referências bibliográficas ou fontes utilizadas para dar embasamento a esta ideia, dificultando a existência de atividades práticas, como a de leituras complementares ou maiores problematizações dessa questão em discussões em sala de aula, lembrando que essa afirmação também não foi trabalhada nos exercícios propostos.

 

Ademais, no mesmo livro didático é mencionada a constituição de fazendas voltadas para a produção de vinho e azeite (PROJETO ARARIBÁ HISTÓRIA, 2006, p. 189), tendo em sua base o trabalho escravo, no processo de expansão das fronteiras de Roma, sendo estas construções um empreendimento caro. Contudo, não destaca a existência de regiões de influência, como o Egito, que era um grande fornecedor de trigo para a cidade de Roma.

 

Na obra “Projeto Araribá História” há a afirmação: “Os escravos exerciam diferentes ofícios: trabalhavam nas plantações, nas minas e nas atividades urbanas” (2006, p. 190). Entretanto, essa simples afirmação apenas faz o leitor pensar no trabalho braçal, um ponto a se questionar, visto que, dependendo da condição social que o cativo possuía entre seu povo, este poderia obter posição de confiança junto à elite romana, como, por exemplo, de professor para filhos dos governantes de Roma.

 

A questão da escravidão, analisada pelo historiador Moses I. Finley, existente na Antiguidade, nos mostra que, diferentemente do que ocorreu na época Moderna, não era definida pela cor da pele, isto é, a figura do branco como pessoa livre e de negros ou indígenas como cativos. Embora não seja um objetivo fazer uma análise profunda do regime escravista entre os gregos e romanos não podemos desconsiderar que esse modelo de produção também foi um estimulante às práticas comerciais nessas duas sociedades, tanto que, Finley nos afirma que há historiadores do século XX que atribuem o declínio da Antiguidade ao fim da escravidão (FINLEY, 1991). Este historiador reforça a figura do cativo como mercadoria:

 

“Foi tão somente com o desenvolvimento do capitalismo que o trabalho assalariado surgiu como a forma característica de trabalho para outrem. A força de trabalho tornou-se, então, uma das principais mercadorias à venda. No caso da escravidão, ao contrário, a mercadoria é o próprio trabalhador” (FINLEY, 1991, p. 70-71).

 

A questão do escravo como mercadoria só seria mudada em caso de concessão da liberdade, por parte do senhor. Contudo, essa manumissão só era estendida aos filhos de ex-cativos, nascidos após esse ato de libertação (FINLEY, 1991, p. 77). Todavia, em análise mais recente é exposto o fato de que o cativo romano, assim como o escravo ateniense, poderia comprar a própria liberdade, embora houvesse restrições para que o ex-cativo atuasse na esfera pública:

 

“O Império Romano foi uma das sociedades antigas onde a utilização da mão de obra escrava teve sua mais significativa importância. Em geral, os escravos trabalhavam nas propriedades dos patrícios, grupo social romano que detinha o controle da maior parte das terras cultiváveis do império. Assim como em Atenas, o escravo romano também poderia exercer diferentes funções ou adquirir a sua própria liberdade. A única restrição jurídica contra um ex-escravo impedia-o de exercer qualquer cargo público” (SOUSA, S/D).

 

Considerações finais

Como um pensador político, é possível perceber que Cícero compreendia muito bem o papel estratégico ocupado pelas trocas marítimas, contudo, essas vantagens não poderiam superar as tradições que prendiam o cidadão romano ao compromisso, tanto de trabalhar no campo quanto na defesa da cidade, pois, ao ter como referência Políbio, é possível notar o papel estratégico realizado pelo soldado cidadão, que não agia movido pela ganância, mas pelo desejo de defender sua família ou seus semelhantes.

 

Assim como Cícero apresentava os prós e contras nas práticas comerciais, Moses Finley, com base em suas referências, nos mostra a escravidão romana como um mecanismo necessário, pois este historiador faz menção ao posicionamento de Mommsen, por ele considerar a escravidão como essencial ao desenvolvimento de Roma, contudo, criticava-a moralmente (FINLEY, 1991, p. 37). Moses Finley nos fala sobre a existência das redes de abastecimento. A partir disso, é possível pensar que essas redes poderiam ser alcançadas por via marítima, ou seja, durante o processo de expansão de Roma, tendo como uma importante via de acesso o mar Mediterrâneo, a fim de obter escravos ou gêneros alimentícios essenciais para a manutenção da vida do povo romano, como o trigo, proveniente do Egito.  

 

Na obra: “Projeto Araribá História” foi apresentado, de forma resumida, os principais acontecimentos da história de Roma, ao situar sua transição de República para Império e algumas consequências do regime escravagista, como as revoltas de escravos, que não foram alvo de pesquisa dado o escopo da análise apresentada na introdução deste texto.

 

Conforme foi dito anteriormente, a escravização romana não era estabelecida pela cor da pele, porém, estabeleceu-se pela dominação forçada, por meio de um exército que passou a ser constituído de forma regular e profissional. Desse modo, expansões territoriais e comerciais caminharam juntas, culminando no aumento da importância de Roma na Antiguidade como uma potência escravagista.

 

Referências biográficas

Luciano Araujo Monteiro é aluno, vinculado ao programa de mestrado acadêmico, pelo Departamento de História da UNIFESP. Graduado em História, com certificação em Patrimônio e pós-graduado em Gestão Pública pela mesma universidade. É autor do livro: “As múltiplas visões de um historiador”. Contatos: lucianoaraujomonteiro@yahoo.com.br; lucianoaraujomonteiro@gmail.com.

 

Referências bibliográficas

BRASIL. Projeto Araribá História (5ª série). São Paulo: Editora Moderna, 2006.

 

CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Tradução de: Amador Cisneiros. Ediouro. 5ª Ed. S/D. p. 59-87.

 

FINLEY, Moses I. Escravidão Antiga Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1991.

 

MINOGUE, Kennety. Política: uma brevíssima introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

 

POLÍBIO. História. Seleção, tradução, introdução e notas de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 2ª Ed. 1996. p. 325-349.

 

SOUSA, Rainer Gonçalves. Escravidão na Antiguidade Clássica, S/D. Disponível em: https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/historiageral/escravidao-na-antiguidade-classica.htm (acesso: 10 mai. 2020)

3 comentários:

  1. Boa tarde Luciano, texto mega interessante.
    Tive um questionamento sobre a questão do trabalho escravo e o sistema romano. Quando pensamos em sistema escravista é normal imaginar que todo o sistema econômico seja movido principalmente por trabalho escravo, porém o comércio e o cultivo de campo romano eram atividades importâncias para a manutenção econômica e não apenas o trabalho escravo. Minha pergunta então fica a utilização de escravos me aparenta ser uma forma secundaria do sistema romano (se estiver errado sinta-se livre a me corrigir), porém mesmo sendo dessa maneira ela é considerado um regime escravista?
    Tiago Rezende Lopes

    ResponderExcluir
  2. Olá, Thiago. Agradeço por ler o meu texto. Eu não diria como secundário, visto que, o sistema escravista romano passa a se consolidar na transição da República para o Império. Creio que há momentos em que podemos falar de dominação romana, assim como houve situações de escravização imposta pelos romanos. Para tentar deixar mais claro, vou usar alguns exemplos:
    Os judeus sofriam a dominação romana, mas tinham a liberdade de culto e de seguir os próprios costumes, contanto que estes pagassem tributos e fossem leais ao governo romano;
    Podemos falar que houve escravização romana na guerra iniciada por Júlio César contra os gauleses, na qual este povo foi submetido ao cativeiro por Roma. Ademais, a política expansionista dos romanos trouxe consigo a obtenção de escravos. Por isso, podemos dizer que Roma tornou-se uma potência escravista.

    Luciano Araujo Monteiro

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ah sim compreendo, muito obrigado pela atenção e o esclarecimento Luciano.
      Tiago Rezende Lopes

      Excluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.