Dalgomir Fragoso Siqueira

 

A LISÍSTRATA DE ARISTÓFANES E O PAPEL SOCIAL DA MULHER NA GRÉCIA DO SÉC. V AEC


 

Dadas as distâncias espacial e temporal que separam os alunos dos temas abordados nas aulas de História, sobretudo de Antiguidade Clássica, faz-se necessário um empreendimento maior do professor a fim de despertar o interesse dos educandos pelo assunto. Nesse sentido, devemos atentar para o fato de que “a construção do conhecimento histórico, bem o sabemos, requer contextualização (SOUZA NETO, 2014, p. 3)”, o que denota a necessidade de inserir no universo dos educandos fontes alternativas, para além do material didático, como obras e expressões culturais que os envolvam e aproximem do tema estudado. Tendo isso em mente, o teatro grego configura uma valiosa fonte para o ensino de História Antiga, uma vez que:

 

“O contato com a peça teatral instiga o educando a inserir a sua própria identidade pessoal e social numa dimensão histórica, reconhecendo o “papel do indivíduo nos processos históricos, simultaneamente, como sujeito e como produto dos mesmos”, posicionando-se diante dos fatos circundantes através do choque comparativo com as experiências do passado, explorando contradições, contrastes e coincidências entre as experiências sociais vividas e aprendidas (SOUZA NETO, 2014, p. 8)”.

 

Com efeito, ao longo deste texto procurar-se-á demonstrar como poderíamos abordar o tema do papel social da mulher na Grécia Antiga, mediante a utilização da obra Lisístrata, do comediógrafo Aristófanes, numa tradução do humorista e escritor Millôr Fernandes. Isso posto, o presente texto se propõe a gerar possibilidades metodológicas para o ensino de História Antiga a partir da análise da peça, contextualizando-a ao período em que foi escrita, a fim de compreender a representação feminina feita pelo autor. Tal proposta está inserida no que preceitua à BNCC acerca de habilidades que se espera desenvolver junto dos alunos no primeiro ano do Ensino Médio, as quais consistem em: “(EM13CHS102) Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos (BRASIL, 2017, p. 572)”.

 

O Papel Social da Mulher na Grécia Antiga

Havia uma distinção clara e particular entre a vida privada e a vida pública na Grécia Antiga. As mulheres e as crianças, assim como os escravos e estrangeiros, não eram considerados cidadãos e, portanto, não faziam parte da vida pública, a qual compreendia a participação nas assembleias, nos festivais e no exército. “A actividade feminina restringia-se nesta época praticamente ao campo doméstico, pois que à mulher não assistiam direitos políticos nem jurídicos, e a sua participação no quotidiano citadino era muito limitada (SILVA, 1980, p. 98)”. Ou seja, as mulheres não tomavam parte nas decisões políticas e administrativas da pólis, limitando-se, praticamente, ao espaço privado dos cuidados e da administração do oikós. Dessa forma, como bem aponta Maria de Fátima de Souza e Silva:

 

“De um modo geral o dia a dia da mulher ateniense desenrolava-se no interior de sua casa. Jovem ainda, as horas decorriam para ela num contacto estreito com a mãe e com as escravas da casa, abrigada nos apartamentos destinados às mulheres, limitada até no convívio com os elementos masculinos da família (cf. Lys. 473-475, Th. 414 sqq.), diante dos quais lhe ficava bem manter o silêncio (SILVA, 1980, p. 99)”.

 

A missão mais importante que competia à mulher grega era justamente a de mãe de família. Para os antigos gregos, o casamento não tinha o significado de sacramento, típico da cultura judaico-cristã em que vivemos, e a principal razão que justificava o matrimônio para aquela sociedade era o dever de perpetuar a raça. “Sobre a mulher pesava, com a força de uma ameaça, a obrigação de dar ao marido descendência, e sobretudo um filho varão, que herdasse o dever de perpetuar a raça e o patrimônio e manter vivo o culto dos antepassados (SILVA, 1980, p. 102)”. Por esses motivos, era incomum haver sentimentos profundos entre marido e mulher na Grécia Antiga, o que dentre outros fatores, limitava consideravelmente as relações conjugais.

 

O Teatro Grego – A Comédia

Os primeiros concursos de comédia foram organizados durante as Grandes Dionisíacas que ocorreram em Atenas entre 487-486 AEC, época em que o gênero foi admitido nos concursos oficiais. Entretanto, segundo Grimal (2002, p. 53), “a comédia existia já nos demos áticos, aproximadamente um século antes de serem introduzidos nos concursos em Atenas”. Ainda conforme o mesmo autor, o primeiro dramaturgo a impor sua marca no gênero foi Aristófanes, por ser um criador original e único, o qual foi para os Antigos, e ainda o é para nós, o maior autor de comédias de seu tempo.

 

A Comédia Antiga, isto é, de Atenas do século V AEC, é geralmente definida por privilegiar a temática política (OLIVEIRA, 1993, p. 75), utilizando-se da sua capacidade de censura e sátira para tecer uma crítica social, posto que “o comediógrafo, como cidadão, tinha seu trabalho permeado pelas problemáticas sociais (MOURA; SILVA, 2016, p. 17)”. A comédia desse período estruturava-se a partir de várias partes obrigatórias, significativamente diferentes das da tragédia, as quais, baseando-se essencialmente na descrição de Pierre Grimal (2002), compreendem:

 

1)    O prólogo - a exposição dos acontecimentos, que poderia vir em forma de monólogo ou diálogo;

2)    O párodos - o primeiro canto do coro);

3)    O agón - o debate que se instaurava entre o ator principal, condutor do jogo, e o coro);

4)    A parábase - coro característico, em que os atores se dirigiam aos espectadores, a propósito da ação da peça ou abordando assuntos com ela não relacionados imediatamente (MOURA; SILVA, 2016, p. 17);

5)    Com a parábase, chegava-se ao fim da parte da comédia em que a estrutura era mais rigorosa, iniciando-se uma sequência de cenas breves, as quais estavam separadas por cantos do coro — o que nos remete aos estásimos e episódios da tragédia,

6)    Por fim, vinha a saída do coro, tratada muitas vezes como uma cena de ação, em que o riso é levado aos seus extremos: a poesia cede o lugar aos eternos métodos da farsa.

 

A Representação Feminina em Lisístrata, de Aristófanes

Nessa comédia de Aristófanes, datada de 411 AEC, o enredo gira em torno de uma greve de sexo instaurada pelas mulheres das cidades gregas envolvidas na Guerra do Peloponeso, lideradas pela ateniense Lisístrata, como forma de persuadir seus maridos a pararem a guerra e, assim, estabelecer a paz. Porém, como elucidado por Margarida Maria de Carvalho (1996, p. 28), “apesar de o poeta grego ter utilizado a mulher como protagonista, sua comédia não deve ser tratada como um discurso de libertação feminina”. A intenção de Aristófanes, como enfatiza a autora no mesmo texto, consistia em utilizar a mulher para fazer uma crítica à sociedade contemporânea a sua época. “Em Lisístrata o poeta cômico aproveita-se do perfil feminino, considerado inferior ao do masculino, para enviar suas mensagens políticas” (CARVALHO, 1996, p. 34). Portanto, um dos principais fatores que dão a peça o valor cômico é representar perso­nagens femininas em situações que, para os antigos gregos, seriam improváveis.

 

Bastante edificantes também, são os apontamentos de Ana Maria César Pompeu, a autora define os diversos paradigmas míticos aos quais Aristófanes teria recorrido em Lisístrata, uma vez que eles afirmam (na obra) “a competência das mulheres em aconselhar a cidade com um discurso justo, pois elas repõem os homens e ainda revigoram a pólis através dos rituais de fertilidade próprios do sexo feminino” (POMPEU, 2011, p. 91).

 

Apesar do absurdo enredo de Lisístrata, em que as mulheres provocam uma greve de sexo e tomam a Acrópole visando acabar com a Guerra do Peloponeso (visto que, pelo que sabemos sobre a posição da mulher na sociedade ateniense, tal situação seria extremamente improvável), Aristófanes nos apresenta diversos fatos sobre o cotidiano feminino, os quais incluem deveres e cuidados domésticos, tradições e cultos, que poderiam ser devidamente utilizados numa aula de Antiguidade Clássica. A partir de uma leitura e debate coletivo com os educandos, poder-se-ia problematizar tanto o papel social da mulher na antiga Hélade, quanto sua representação em obras teatrais. Como exemplo, há um trecho da parábase que apresenta a iniciação religiosa das mulheres atenienses, a qual Florenzano (1996, p. 21-40, Apud POMPEU, 2011, p. 81) nos assegura que é uma passagem considerada fundamental para o conhecimento da vida das mulheres na cidade grega:

 

CORO DE MULHERES - E agora, todos os que são cidadãos, escutem o que tenho a dizer. Mulher que sou, fraca embora no conceito geral dos cavalheiros, venho aqui dar meus conselhos à cidade, que de mim merece tudo, pelo carinho e calor com que me tratou no berço, pelas distinções e pelo luxo com que me acompanhou até a juventude. Aos sete anos de idade, eu carregava as ânforas sagradas, aos dez, botava incenso no altar de Atenas; depois, vestindo a túnica amarela, fui virgem de Afrodite nas festas de Braurônia. E enfim, feita donzela, alta e formosa, meu corpo já pronto para ser mulher, pedi à Deusa que me libertasse de meus votos de virgindade e passei a usar um colar de figos secos.

CORIFÉIA - Por tudo isso, vim aqui trazer a Atenas o meu melhor conselho. Não é um crime ter nascido mulher, e minhas palavras devem ser seguidas se puderem curar os nossos infortúnios. A minha contribuição ao Estado, eu a dou em filhos, que alimento e crio. Mas vocês, velhotes miseráveis, não contribuem com coisa alguma pra comunidade. Pelo contrário, malbarataram todo o tesouro que nossos antepassados conquistaram com suor e prudência. E, como compensação, continuam a arriscar a vida de todos os cidadãos e a segurança do Estado com guerras insensatas. Têm, como defesa, uma palavra que seja? Pois se têm, não a digam. Será na certa urna mentira que vai me irritar ainda mais. E ao primeiro que disser mais uma mentira, quebramos o queixo com nossas sandálias. Para isso calçamos as mais pesadas”. (ARISTÓFANES, 2003, p. 31-32, Trad.: Millôr Fernandes).

 

Uma questão presente na obra que pode ser problematizada está relacionada à sexualidade, visto que não faria sentido uma greve de sexo numa sociedade onde havia diversas opções alternativas de relações fora do casamento. Entretanto, através das queixas do personagem Cinésias, percebemos que os homens perderam suas esposas não só sexualmente, mas também as perderam, por exemplo, no que tange aos cuidados dos filhos:

 

CINÉSIAS - (para sua esposa, Mirrina) Está ouvindo? Não tem pena do pobre garotinho? Há seis dias que não se lava, nem come direito.

MIRRINA - Claro que tenho pena, pobre filho. Um pai tão negligente.

CINÉSIAS - Desce, querida, vem cuidar dele um pouco.” (ARISTÓFANES, 2003, p. 38, Trad.: Millôr Fernandes).

 

Perderam quem cuidasse da administração doméstica:

 

CINÉSIAS - (Recuando.) Nossa casa está irreconhecível. Sujeira, desarrumação, uma tristeza.

MIRRINA - Que me importa?

CINÉSIAS - Não te importa ver teus melhores vestidos arrastados na lama do quintal? As galinhas fizeram ninho em cima de tua túnica da Trácia.

MIRRINA - Que é que você quer? Que eu chore?” (ARISTÓFANES, 2003, p. 39, Trad.: Millôr Fernandes).

 

Além de terem perdido a própria companhia delas:

 

CINÉSIAS - ... A vida não tem mais encantos para mim desde que ela abandonou meu lar. Entro em casa com o rosto em pranto, tudo me parece tão vazio, até meus alimentos já não têm sabor [...]” (ARISTÓFANES, 2003, p. 38, Trad.: Millôr Fernandes).

 

Como vemos, a partir da leitura e problematização da obra de Aristófanes, é possível inferir diversos aspectos do papel da mulher na sociedade ateniense do século V AEC, e ao mesmo tempo trazer essa questão para o nosso contexto, ao discutirmos acerca da representatividade e participação feminina nas decisões políticas e governamentais de nossa sociedade, por exemplo.

 

Considerações Finais

A utilização de fontes diversas em aulas de história, como elucidado no início desse trabalho, pode contribuir para uma aproximação dos educandos com o tema, tornando a experiência da aprendizagem mais interessante para eles. Cabe ao professor ter o conhecimento sobre como utilizar, da melhor forma possível, cada tipo de fonte, levando em consideração as especificidades de seus alunos e do tema abordado. Nesse sentido, usar o teatro grego como fonte pode requerer um maior esforço do educador, o que implicaria empreender pesquisas mais aprofundadas sobre as obras. Tal esforço, contudo, tende a render bons resultados, como quando se busca despertar o interesse dos alunos pelo papel social feminino na Antiguidade, um dos muitos temas que podem ser trabalhados a partir da Lisístrata de Aristófanes.

 

Referências biográficas

Dalgomir Fragoso Siqueira é Graduando em Licenciatura em História pela UPE – Campus Mata Norte.

 

Referências bibliográficas

ANDRADE, Marta Méga de. Aristófanes e o Tema da Participação (Política) da Mulher em Atenas. PHOÎNIX, p. 263-280, 1999.

 

ARKINS, Brian. Sexualidade em Atenas no Século V. Clássicas UFPR – Pesquisas, Projetos e Orientações, Trad.: Leonardo Teixeira de Oliveira, p. 1-12, jun. 2006- mar. 2007.

 

ARISTÓFANES. A greve do Sexo, Lisístrata. Trad.: Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2003.

 

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Último acesso em: 23/04/2021.

 

CARVALHO, Margarida Maria. A mulher na comédia antiga: A Lisístrata de Aristófanes. História Revista, Goiás, p. 27-48, 1996.

 

GRIMAL, Pierre. O Teatro Antigo. Lisboa: Edições 70, 2002.

 

MATA, Giselle Moreira da.  “Entre risos e lágrimas”: uma análise das personagens femininas atenienses na obra de Aristófanes (séculos VI a IV a.C.). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás, Faculdade de História, 2009.

 

MOURA, Amanda Jéssica Ferreira; SILVA, Carlos Augusto Viana da. A Condição Feminina em Lisístrata e em A Fonte Das Mulheres. Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo, nº 28 – julho a dezembro de 2016.

 

OLIVEIRA, Francisco de. Teatro E Poder Na Grécia. HVMANITAS – Vol. XLV, p. 69-93, 1993.

 

_____; SILVA, Maria de Fátima. O Teatro De Aristófanes. Coimbra: Faculdade de Letras, 1991.

 

POMPEU, Ana Maria César. A construção do feminino em Lisístrata de Aristófanes. Revista Letras, Curitiba, N. 83, p. 75- 93, jan./jun. 2011.

 

_____. Aristófanes e a Guerra dos Sexos em Lisístrata. La Plata: FAHCE-UNLP, 2012.

 

SILVA, Maria de Fátima de Sousa e. A posição social da mulher na comédia de Aristófanes. Rev. Humanitas. Vol. 31/32. 1980.

 

SOUZA NETO, José Maria Gomes de. O teatro ateniense na formação do Historiador. Boletim escolar, Aracaju, n.4, p. 3-19, jul./ago. 2014.

7 comentários:

  1. RICARDO HIROYUKI SHIBATA26 de maio de 2021 às 10:09

    Olá,
    Considero a proposta muito interessante. Então, não seria pertinente articular o texto com outros textos importantes, como os textos de Homero, a filosofia, as tragédias etc.?

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    1. Olá Ricardo

      Agradeço o comentário, e sim, seria bastante pertinente tal articulação, porém no texto me detive apenas a análise da comédia de Aristófanes, como forma de apontar uma proposta mais sucinta e direta.

      Atte.

      Dalgomir

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  2. Olá Dalgomir Fragoso Siqueira! Parabéns pelo seu trabalho. Desenvolver a temática da mulher na Antiguidade é um dos maiores desafios para as práticas de ensino atuais. A partir dessa excelente exposição sobre a peça de comédia de Aristófanes, Lisistrata, como você observa a inserção disso na sala de aula? Quais seriam as maiores dificuldades e desafios? Seria necessário adaptar o vocabulário para melhorar a compreensão dos jovens?

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    1. Olá Douglas Cavalheiro, fico grato pelo comentário.
      Então, a peça é repleta de expressões de duplo sentido, um dos recursos empregados pra gerar humor, então realmente é necessário um maior cuidado do professor ao trabalhar a peça com os alunos. Sendo trabalhada no 1° ano do E.M., não vejo uma necessidade do professor adaptar o texto, pois os alunos tem em média 15-16 anos. Nesse caso, acredito que as dificuldades que o professor teria numa aula sobre esse tema, seriam mais relacionadas a fatores próprios de cada turma, como a participação dos alunos, o quanto eles colaborariam debatendo, analisando os trechos selecionados, etc.

      Atte.

      Dalgomir

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  3. Não conhecia a obra, mas achei a ideia genial, inclusive os alunos, após a leitura da peça poderiam encená-la. De fato, a criatividade do professor é que tornará a temática atrativa para os estudantes. Parabéns.

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    1. Olá Luciano, obrigado pelo comentário
      De fato, uma das utilidades de se trabalhar com teatro grego em aulas de História, é justamente a possibilidade dos alunos encenarem a peça e se sentirem parte da história, interagindo de forma dinâmica com o assunto. Distribuir os personagens entre os alunos e pedir para eles lerem as falas, mesmo sem encenar, também configura uma possibilidade interessante.

      Atte.

      Dalgomir

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