A MORTE NO PASSADO E A VIDA NO PRESENTE: CONTRIBUIÇÕES DO ESTUDO
DA VARIABILIDADE DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS
O TAPHOS (Grupo de Pesquisa em Práticas Mortuárias no Mediterrâneo
Antigo) foi idealizado em 2013 e oficializado em 2014 e corresponde ao primeiro
grupo de estudos sobre as práticas funerárias fundado no quadro acadêmico
universitário brasileiro. Sediado no Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de São Paulo (MAE/USP) e cadastrado no CNPq (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/4265354749556773),
o grupo visa a interdisciplinaridade, a interlocução e a colaboração dos
pesquisadores especialistas brasileiros e internacionais nas mais
diversificadas áreas do conhecimento que contemplam abordagens e perspectivas
teórico-metodológicas variadas de estudos sobre a morte, os mortos e o morrer e
sobre os contextos funerários em sociedades do passado, da Proto-história do
Mediterrâneo e da denominada Antiguidade, como por exemplo, Arqueologia,
História, Filologia, Epigrafia, Bioarqueologia, Antropologia Biológica ou
Bioantropologia, Zooarqueologia, Biologia, Historiadores da Arte, Iconografia, Antropólogos
socioculturais, etc. (BINFORD, 1971; BUIKSTRA & BECK, 2006; GOWLAND &
KNÜSEL, 2006; O’SHEA, 1984; PEARSON, 2002; RIBEIRO, 2007; SILVA, 2014; SOUZA,
2011, 2018, 2019, 2020A, 2020C; UCKO, 1969) O caráter multifacetado do registro
material e textual das práticas funerárias evidencia a necessidade da
interdisciplinaridade na busca de uma compreensão mais profícua e abrangente
das ações humanas em relação à morte.
Antes de discorrer sobre as perspectivas teóricas e abordagens
metodológicas, os objetivos, as atividades e os resultados que o grupo de
pesquisa tem alcançado durante todos esses anos que nos permite refletir sobre
a interação entre a prática acadêmica universitária com a sociedade, algumas
questões primordiais emergem, sobretudo, no contexto mundial atual em que
vivemos.
- Qual o sentido e – utilizando a linguagem produtivista atual –
quais os produtos do estudo das sociedades do passado?
- Qual a utilidade em obter recursos materiais, financeiros e
humanos para se realizar pesquisa acadêmica sobre aspectos da denominada
Proto-história e Antiguidade no Brasil?
- O que o estudo das práticas mortuárias das sociedades do passado
tem a ver conosco, com a nossa realidade?
- Por que e para que serve, afinal, “estudar os mortos” de
sociedades tão distantes temporal e espacialmente de nós?
Na tentativa de elucidar tais questões, propomos trazer para
discussão um caso recente postado na mídia e rede social facebook. No dia 25 de
setembro de 2020, um grupo denominado “regia anglorum” (http://www.regia.org/)
postou uma atividade que chamou a atenção de um grande público. O grupo se
autodefine como “um grupo de história viva anglo-saxão, viking e normando”
formado por “amigos que se reúnem em fins de semana privados, shows públicos,
filmagens e promoções em todo o Reino Unido, com uma adesão crescente aos EUA”,
e conclui que “o que fazemos e é empolgante, cativante, educacional, divertido”
(https://www.facebook.com/regiaanglorum/.
Tradução nossa).
Em uma das atividades promovidas pela comunidade, os membros da
comunidade, homens, mulheres, crianças e até os animais de estimação foram
incentivados e desafiados a postarem fotos que simulassem seus túmulos,
inserindo objetos que fizessem parte do cotidiano e que cada um gostaria de
levar para o “além”
(https://www.facebook.com/regiaanglorum/posts/1434434423428532):
“Quem disse que você não pode levar isso com você?
Muito sobre o que sabemos a respeito da Idade Média vem dos
achados das sepulturas. Quando os mortos foram escondidos na terra, eles foram
enterrados com muitos dos itens que podem ter sido utilizados na sua vida cotidiana.
Enquanto essa tradição morreu após a cristianização, nossos membros se
divertiram imaginando que tipo de coisas do dia a dia eles levariam consigo
para a vida após a morte. Alguns dos nossos animais de estimação precisam de
mais prática para se fingir de mortos” (Tradução nossa).
As fotos postadas, tiradas pelos membros que participaram do
desafio, incluem uma variedade de atitudes dos vivos em relação à morte – neste
caso, suas próprias – que revelam diferentes posições desejadas para o
“sepultamento” como por exemplo, deitado de costas (decúbito dorsal) com os
membros inferiores estendidos e os superiores semiflexionados (Figura 1) ou
deitado sobre o lado (decúbito lateral) direto (Figura 2) ou esquerdo (Figura
3) do “morto” com os membros superiores e inferiores flexionados e uma
variedade enorme dos objetos que seriam depositados para acompanhar seus
corpos, desde arma de fogo e livros (Figura 1), instrumentos musicais (Figura
2) e referentes à atividade de tear (Figura 3), até animais de estimação (gato)
(Figura 2), ou bichos de pelúcia (Figura 3).
Figura 1. Grupo regia anglorum, foto post no facebook (https://www.facebook.com/regiaanglorum/photos/pcb.1434434423428532/1434431293428845).
Figura 2. Grupo regia anglorum, foto post no facebook (https://www.facebook.com/regiaanglorum/photos/pcb.1434434423428532/1434467670091874).
Figura 3. Grupo regia anglorum, foto post no facebook (https://www.facebook.com/regiaanglorum/photos/pcb.1434434423428532/1434431243428850).
Figura 4. Grupo regia anglorum, foto post no facebook (https://www.facebook.com/regiaanglorum/photos/pcb.1434434423428532/1434431176762190).
As últimas imagens apresentadas na postagem correspondem a animais
domésticos, cachorros, que teriam simulados seus próprios sepultamentos (Figura
4), enterrados com seus brinquedos.
Independentemente do grupo referir-se a um recorte histórico
distinto daquele tratado aqui, o que queremos destacar e analisar é o potencial
da atividade que foca no evento da morte, do morrer, para refletir sobre como
as pessoas se relacionam, em última instância, com a vida, com o mundo
material, os objetos que fazem parte do seu cotidiano e que configuram suas
identidades pessoais e seus papéis sociais (como por exemplo, de gênero e/ou
etário, suas atividades profissionais e/ou hobbies) e com seus próprios corpos.
Além disso, podemos apontar ainda que as formas de lidar com a morte também se
caracterizam pelas relações com os demais indivíduos e com os animais, criando
um mundo complexo de valores pessoais e culturais que definem e constroem os
parâmetros da dinâmica das interações entre as pessoas com o mundo material e
das pessoas entre si.
Todas as pessoas estão vestidas. Todas elas, a despeito do gênero,
da idade ou dos objetos que acompanham as pessoas, portam algum tipo de
cobertura tanto na parte superior quanto inferior do corpo. Contudo, nas fotos
apresentadas neste breve artigo, um dos “corpos” está com os pés expostos, nus,
um com meia e o outro com meia e sapato. O retriever não apresenta
nenhuma vestimenta e nenhum objeto que possa servir como tal.
Uma constatação, a priori, trivial como essa – o porte
generalizado de vestimentas, roupas – permite-nos levantar hipóteses
interpretativas, a posteriori, que nos revelam sobre um costume cultural
universal dos indivíduos inseridos em uma determinada sociedade e não enquanto
um hábito ou vontade individual.
Não nos cabe – nem há espaço aqui neste texto – esmiuçar todas as
possibilidades de análise que podemos realizar, argumentos e hipóteses
interpretativas que podemos levantar por meio da comparação entre as fotos.
Nosso objetivo é enfatizar que tal atividade possui uma aplicabilidade didática
prática em demonstrar de forma explícita as relações entre os vivos e os mortos
(D’AGOSTINO, 1985; PEARSON, 1993).
A morte constitui um fato biológico, social e cultural (SOUZA,
2011, 2018, 2019, 2020a). Enquanto fato biológico, o encerramento das
atividades vitais do indivíduo gera vestígios físicos que correspondem às
transformações e redefinições do corpo humano com o processo inevitável de
decomposição. Enquanto fato social, há necessariamente uma transformação dos
papéis que os indivíduos possuem na sociedade a partir do momento em que ocorre
a morte biológica. Por exemplo, o morto não irá mais atuar como homem, marido,
pai, filho, tio, professor, coordenador etc. Suas identidades sociais são
modificadas e seus papéis redefinidos enquanto morto. Finalmente, enquanto fato
cultural, os vestígios biológicos da morte (o corpo do morto) e os papéis
sociais dos indivíduos em vida são apropriados e processados culturalmente
pelos vivos e essas apropriações podem-se adquirir formas simbólicas de poder e
valores sociais e podem também constituir vetores de ações rituais que integram
um corpo de crenças formativo da cosmogonia das sociedades (BELL, 2009; MORRIS,
1987, 1992).
Morrer torna-se, assim, um processo social em que as ações dos
participantes possuem um duplo aspecto; são convencionalizadas e padronizadas
e, simultaneamente, são performáticas e fenomenológicas, isto é, cada execução
das práticas mortuárias é única no tempo e no espaço. Além disso, elas são
dotadas de intenção, escolha, tem objetivos e finalidades que são resultados de
um determinado contexto ideológico e histórico (BELL, 1991, 2009; MORRIS, 1992;
ROBB, 2013). As práticas sociais e culturais humanas em torno da morte, possuam
ou não carácter ritual, ideológico e/ou até mesmo criminal com a violência,
abandono e ocultação do corpo do morto, resultam em vestígios – resíduos –
materiais, incluindo registros literários e iconográficos das ações dos vivos,
que constituem fontes e objetos de estudo da Arqueologia Funerária (GOWLAND
& KNÜSEL, 2006; RIBEIRO, 2007; SILVA, 2014; SOUZA, 2011).
Tais constatações que, também possuem um caráter óbvio à primeira
vista, revelam uma característica fundamental das relações entre os vivos e os
mortos e dos significados das práticas mortuárias: elas são realizadas pelos
vivos. Se voltarmos no exemplo da postagem do regia anglorum no
facebook, verificamos que o membro canino que “participou” da atividade (Figura
4) não “escolheu” os objetos que seriam enterrados consigo. Em primeiro lugar,
pelo fato de ser um animal doméstico, um cachorro e, consequentemente, não ser
dotado de vontade própria e nem de habilidades cognitivas racionais que o
permitem simular e imaginar uma situação hipotética sobre sua própria morte. Em
segundo, – fato mais importante – o processo seletivo da estrutura e da
composição dessa situação hipotética é realizado pelos vivos, são seus donos
que escolheram colocar como acompanhamentos do “morto”, os brinquedos que ele
possuiu em vida, independentemente dos desejos, vontades e prioridades do
defunto. Como afirma o arqueólogo clássico Ian Morris, “a morte é tudo, menos o
fim” (MORRIS, 1897, p. 29. Tradução nossa).
Isto significa dizer que, na verdade, os significados dos
vestígios materiais das práticas funerárias são atribuições dos vivos, possuem
usos, funções e são “lidas”, decodificadas por aqueles que visualizam,
compartilham e vivenciam os mesmos códigos culturais em uma sociedade. As práticas
funerárias servem, atuam e interagem com o mundo dos vivos.
Trata-se de um campo fértil para exteriorização de desigualdades
de natureza e caráter diversificados nas sociedades (GOWLAND & KNÜSEL,
2006; SOUZA, 2018, 2019). Debruçarmo-nos sobre a compreensão dessas
desigualdades nas sociedades do passado, contribui para refletir sobre as
desigualdades no presente. O estudo das práticas mortuárias buscando a
compreensão da variabilidade contextual de sociedades do passado que lidaram de
forma tão diversificada com os mortos, a morte e o morrer em relação às atuais,
às quais estamos inseridos e imersos no mundo ocidental, possui, dessa forma,
um papel fundamental no entendimento dos nossos próprios valores, atitudes e
valores em relação à morte e aos mortos e, em última instância, aos valores
sociais e culturais que estruturam nossa sociedade.
Poderíamos dizer, até mesmo, que o estudo das práticas mortuárias
possui uma responsabilidade social maior enquanto campo acadêmico-científico no
processo de conscientização da atuação e integração política dos diversos
grupos sociais – tema, aliás, tão importante no cenário histórico atual. Além
disso, o estudo do passado promove a também a conscientização da herança e do
patrimônio histórico vernacular e, consequentemente, da conscientização da
história e da memória de grupos minoritários e marginalizados da sociedade.
Para citar apenas um exemplo que demonstra claramente as conexões
entre passado e presente e explicita a necessidade da interdisciplinaridade no
estudo das práticas mortuárias, expomos sumariamente de um dos relatos mais
antigos sobre epidemia, a denominada Peste ou
Praga de Atenas ou Peste do Egito, ocorrida na Grécia, entre 430 e 427 a.C., em
plena Guerra do Peloponeso (Tucídides, História da Guerra do
Peloponeso, 2.48-54).
Tucídides descreve que a epidemia matou cerca de
um quarto da população de Atenas e teria atingido parte do Mediterrâneo
oriental (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, 2.48.1). O próprio escritor e o
chefe político ateniense Péricles também foram vítimas da doença e o alto
índice de mortalidade foi imenso devido ao despreparo e desconhecimento da
doença, dos seus sintomas, profilaxia e grau de contágio (LITTMAN, 2009).
Contudo, os efeitos do surto foram sentidos muito além das questões
demográficas, envolvendo aspectos socioculturais, religiosos, econômicos e
políticos (MARTÍNEZ, 2017; SOURVINOU-INWOOD, 2003). Os mortos eram cremados em
grandes piras funerárias que podiam ser vistas pelos inimigos espartanos que
retiraram suas tropas a fim de evitar o contato com os atenienses enfermos.
Quando não eram cremados nas piras funerárias, os mortos eram empilhados uns
sobre os outros, deixados para apodrecer ou jogados em valas comuns.
As leis tornaram-se mais rígidas, o comportamento
e a moral dos cidadãos mudaram com a iminência da morte certa causada pela
epidemia e as práticas funerárias também sofreram profundas alterações. O medo
do contágio fez com que muitos dos enfermos não recebessem cuidados
apropriados, sobretudo os indivíduos pertencentes às camadas menos abastadas da
população ateniense (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, 2.51). A
situação precária de higiene resultava no aumento do contágio e,
consequentemente, das mortes. Muitos edifícios sagrados, templos, acabaram
servindo como local de refúgio e acomodação para aqueles que não conseguiam
obter cuidados médicos e ficaram cheios de enfermos e mortos. As pessoas se
sentiam abandonadas pelos deuses e parecia não haver mais benefícios em
adorá-los (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, 2.50, 53).
As primeiras evidências arqueológicas sobre o
evento histórico narrado por Tucídides foram identificadas durante 1994 e 1995,
quando escavações conduzidas por Efi Baziotopoulou-Valavani, diretora da
Terceira Eforia de Antiguidades, durante obras de ampliações das estações do
metrô realizadas próximas ao antigo Cemitério do Cerâmico em Atenas, revelaram
uma vala comum contendo os remanescentes ósseos de aproximadamente 90
indivíduos adultos e 10 crianças (AXARLIS, 1998). Os esqueletos encontravam-se dispostos de forma
completamente desordenada, sem preenchimento de terra entre eles, indicando que
teriam sido jogados na vala. Contudo, vários objetos foram identificados com os
corpos, sobretudo, vasos cerâmicos que permitiram a datação da vala entre 430 e
426 a.C. (AXARLIS, 1998).
O agente patológico causador da epidemia ainda é
alvo de um debate caloroso entre os historiadores e bioarqueólogos, pois os
sintomas da epidemia descrito por Tucídides são comuns às manifestações de
diversos agentes patológicos (LITTMAN, 2009). Utilizando analogias
etnográficas, comparando os sintomas causados pelo vírus Ebola ou vírus de
Marburg em surtos na África, alguns pesquisadores sustentaram a hipótese de que
não se tratava de uma bactéria, mas sim uma doença viral (OLSON et
al., 1996). Em 2005, o estudo paleogenético de
amostras das polpas de alguns dentes de indivíduos da vala comum identificou
sequências de DNA semelhantes às da bactéria denominada Salmonella sorovar
Typhimurium ou Salmonella Typhimurium,
causadora de um tipo de febre tifoide (PAPAGRIGORAKIS et al., 2006a, 2006b).
Tal estudo foi contestado pela metodologia utilizada, sustentando que análises
de DNA antigo não são precisas (SHAPIRO et al., 2006).
Este caso de epidemia na Antiguidade evidencia os inúmeros
aspectos históricos em relação às diversas formas como as sociedades, os vivos,
lidam com os impactos e as consequências biológicas e socioculturais causadas
por eventos excepcionais, como epidemias, alterando as práticas mortuárias,
seus significados e funções. Além disso, o caso apresentado também permite
refletir sobre os mais diversos tipos de documentação mortuária produzida e
resultante de eventos singulares como as epidemias.
A paleopatologia constitui uma área
de conhecimento que busca identificar as enfermidades biológicas e entender o
impacto das patologias nos grupos humanos, no comportamento das sociedades em
relação a tais doenças e suas consequências, como as alterações demográficas,
nos costumes funerários e na interação dos seres humanos com o meio ambiente
(CAMPILLO, 2011; ORTNER, 2003; ROBERTS & MANCHESTER, 1995). O estudo das
doenças no passado integra análises osteológicas humanas, documentação
iconográfica e literária. Nas análises ósseas, a “impressão” de determinados
agentes patológicos nos esqueletos humanos é restrita, sobretudo, das doenças
causadas por vírus que apresentam capacidade de mutação do material genético
muito superior em relação às bactérias. Apesar dos grandes avanços nas análises
paleogenéticas, a capacidade de reconstrução fidedigna das sequencias de DNA
antigo por meio dos recursos tecnológicos atuais ainda é limitada, sobretudo,
das sequências genéticas de vírus RNA que possuem alto grau de mutação genética
(SHAPIRO et al., 2006). Muitas doenças
virais ou condições patológicas, como doenças cardíacas, infecções agudas
gastrointestinais ou respiratórias, não ocasionam nenhum tipo de lesão – marca
– óssea e, portanto, não são visíveis neste tipo de registro arqueológico
(ORTNER, 2003).
Todas essas questões levantadas pelo paralelo com a Antiguidade, sobre
o comportamento dos vivos em relação aos mortos e às visões de morte e
concepções do morrer, os significados das práticas mortuárias, as mudanças nos
rituais funerários e nas atitudes dos vivos em relação aos mortos e aos
próprios vivos em situações em que a morte torna-se tão presente na vida
cotidiana de maneira brutal, com proporções gigantescas e incontroláveis como
os eventos epidêmicos, elucida inúmeros aspectos socioculturais e biológicos
sobre a situação de pandemia de Covid-19 que estamos vivendo e contribui para
pensarmos sobre as formas de lidar com ela. Trata-se de um diálogo profícuo e
dinâmico entre presente e passado, entre disciplinas e diferentes áreas de
conhecimento e, ainda, entre a pesquisa acadêmica e a sociedade em geral.
Retomando o início desse ensaio, gostaríamos de caminhar para as
conclusões dessas reflexões com alguns apontamentos sobre as atividades TAPHOS
e algumas considerações finais sobre os “produtos” dos estudos da
Proto-história e Antiguidade no Brasil. Desde 2014, o Grupo de pesquisa promove
atividades que visam a difusão para todos os públicos, como a realização de
palestras sobre as mais variadas abordagens do estudo das práticas mortuárias.
Além disso, também realizamos workshops e grupos de estudo para debate, a
capacitação e formação de recursos humanos nos diversos aspectos sobre os
estudos da “morte” para públicos diversos e, sobretudo, para professores da
rede pública de ensino.
Gostaríamos de encerrar este texto com a proposta de um
experimento e de um desafio para os professores de ensino fundamental e médio
nesse nosso contexto atual de adaptação do ensino e das estratégias e técnicas
de aprendizagem à realidade da pandemia da Covid-19. Trata-se de um exercício
semelhante à atividade desenvolvida pelo grupo regia anglorum postada no
facebook.
O professor solicita que os alunos – inclusive pertencentes a
diferentes faixas etárias – tirem fotos dos seus “sepultamentos” com os objetos
que eles gostariam de ser enterrados. No processo de discussão, as perguntas
devem ser feitas para todos os alunos. Elencamos aqui algumas sugestões: Por
que você escolheu tal posição do corpo para ser enterrado? Por que escolheu
esses objetos para serem “enterrados” com você? Por que esses objetos são
importantes? Quais os significados desses objetos? Quem – ou quais pessoas –
você acredita que depositará esses objetos serão com você? O que garantirá que
esses objetos serão “enterrados” com você? Haveria mudanças em relação aos
objetos se estivermos em uma situação de epidemia / pandemia como a que estamos
hoje? Na sua opinião, quais seriam essas mudanças? Como seriam as sepulturas?
Quais seriam os objetos depositados nelas? Etc. – outras perguntas que o
professor pode acrescentar segundo seu próprio público.
A partir de então, o docente pode comparar as respostas
evidenciando as semelhanças e as particularidades. Há diferenças entre as
“sepulturas” dos meninos (sexo masculino) e das meninas (sexo feminino)? Há
objetos que são comuns a todas as “sepulturas”? São eles objetos do cotidiano,
usados no dia a dia? Etc.
A comparação dos resultados da atividade com um exemplo do passado
à escolha do professor – como o caso da Peste de Atenas apresentado aqui, por
exemplo –, pode aproximar ainda mais a relação entre o mundo dos mortos e o dos
vivos à realidade cotidiana dos alunos e, também permite expandir o potencial
do exercício efetuado em sala de aula virtual, evidenciando e tornando tangível
aos alunos a importância dos estudos sobre as práticas mortuárias na
Antiguidade por meio de suas diversas abordagens, arqueológica, histórica,
iconográfica etc.
A comparação da variabilidade das atitudes humanas em relação aos
mortos e à morte dos exemplos do passado com os resultados do exercício
proposto efetuado no presente viabiliza a conscientização da diversidade
cultural e da compreensão da pluralidade da nossa própria realidade. Essa
conscientização pode se transformar em instrumentos e recursos para os agentes
sociais lidarem com as situações do presente. Neste sentido, o papel da
academia no que diz respeito aos estudos das práticas mortuárias na Antiguidade
é contribuir para que as diferenças culturais não legitimem as desigualdades
sociais. Dessa forma, tais estudos e sua aplicabilidade didática permitem
buscar eliminar a construção dessas desigualdades e, consequentemente,
dos seus desdobramentos em formas de intolerância e de violência.
Referências biográficas
Camila Diogo de Souza possui bacharelado em História pela
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH/USP), mestrado, doutorado e pós-doutorado em
Arqueologia do Mediterrâneo Antigo pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de São Paulo (MAE–USP), pós-doutorado em Proto-histoire Égéenne na
Maison René Ginouvès (Archéologie et Ethnologie) da Université Paris-Nanterre,
França. Foi Professora Visitante do
Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São
Paulo (CAAF/UNIFESP) (2017-2019) e Pesquisadora Visitante com
Pós-doutorado Sênior do Instituto de História da Universidade Federal
Fluminense (UFF) (2019-2020). É pesquisadora da
École Française d’Athènes (EfA) e coordenadora do Grupo de Pesquisas em
Práticas Mortuárias no Mediterrâneo Antigo (TAPHOS-CNPq), do Laboratório de
Estudos sobre a Cerâmica Antiga da Universidade Federal de Pelotas (LECA-UFPel)
e do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Arqueologia e Antropologia Forense (NEPAAF)
do Laboratório de Estudos Arqueológicos (LEA) da Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP).
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na Grécia Antiga: olhares interdisciplinares. Teresina: Editora da Universidade
Federal do Piauí (EDUFIP), p. 312-339, 2020a.
_____. “Ser ou não ser grego: morte
e identidade na Grécia Antiga”. In: COSTA, P.F.; BAREL, A.B.D.; COSTA, A.C. (orgs.). Cadernos da
Casa-Museu Ema Klabin. São Paulo: Fundação Ema Klabin, p. 183-195, 2020b.
_____. Aprendendo e ensinando com as ‘coisas’: a Arqueologia e a
sala de aula” In: BUENO, A.; CAMPOS, C.E.C.; ASSUMPÇÃO, L.F.B. (org). Falas na Rede. Ensino e
Pesquisa em História e Educação. Rio de Janeiro: Sobre Ontens Edição Especial.
Ebook 2020/UERJ, p. 23-34, 2020c.
TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, 2.48-54. Tradução/edição utilizada: . History of the Peloponnesian War, Volume I:
Books 1-2. Translated by C. F. Smith. Loeb
Classical Library 108. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1919.
UCKO, P. Ethnography and the
Archaeological Interpretation of Funerary Remains. WorldArch 1.2, 1969, p.
262-80.
Prezada Camila Diogo de Souza, primeiramente, gostaria de parabenizá-la pelo excelente texto!
ResponderExcluirDurante a leitura, diversas questões foram surgindo. Trago apenas uma:
No texto, você menciona que, predominantemente, são os vivos que escolhem os objetos que serão sepultados com os mortos. Mas existe ou existiu alguma cultura em que a pessoa morta, antes de ir a óbito, escolhe o que será enterrado consigo?
Atenciosamente,
Márcia Rohr Welter
Boa noite! Parabéns pelo trabalho, gostei bastante. O estudo de vocês viabiliza de certa maneira a interlocução entre elos e costumes grupais.Minha duvida nesse contexto é a da obrigatoriedade de adereços ao ato de ser enterrado, como um importante marco para o estudo arqueólogo e a mudança de perspectiva do protagonismo, digo, a relevância da posição do corpo ou dos adereços seria mais relevante que a própria proposta do ser que foi enterrado? Att-
ResponderExcluirEduardo Silva Leite
Boa noite! achei fascinante o tema abordado. Além disso o texto foi magistral ao expor o conteúdo e os questionamentos feitos no princípio. Dito isso, minha pergunta é: existem diferenças entre os impactos sociais de uma morte natural e de uma morte em prol de sacrifício (aspecto religioso) ?
ResponderExcluirAtenciosamente,
João Guilherme Vieira Poiati.
Prezada Dra. Camila,
ResponderExcluirAntes de tudo, agradeço por compartilhar conosco o seu conhecimento por meio desse ensaio bastante elucidativo.
Dentro desse debate, se possível, gostaria de tirar uma dúvida sobre um tipo específico de sepultura: aquela que se torna centro de peregrinação religiosa, em decorrência do caráter místico do sepultado. Caso a peregrinação a uma sepultura venha a se prolongar por várias gerações, acredito que as chances de sua descaracterização sejam grandes, passando a nos fornecer mais informações sobre as gerações posteriores do que a própria sociedade contemporânea do sepultado. Essa possibilidade realmente existe? Se sim, tem sido grande a incidência de descaracterização de sepulturas pelas gerações seguintes?
Att,
Valmir Medina Riga
Olá, Camila. Parabéns pelo excelente texto!
ResponderExcluirGostei bastante do tema abordado e gostaria de saber os possíveis motivos pelos quais a temática não é tão explorada, visto que desperta a curiosidade em boa parte das pessoas. Além disso, quais seriam as melhores formas de de aliar o interesse por assuntos relacionados a morte ao ensino de história?
- Elaine da Silva Simplicio
Boa noite Camila, primeiramente a parabenizo pelo excelente texto e a agradeço por compartilha-lo conosco.
ResponderExcluirA maneira de como lidar com a morte e a preparação do corpo vária de cultura para cutura,e aqui no ocidente é tratada como um tabu. Como abordar tal tema em sala de aula de uma maneira sútil e que não provoque reações negativas? Visto que, em tempos pandemicos muitos alunos perderam pessoas próximas vítimas de covid-19, podendo se negar a participar da atividade, e ocasionar constrangimentos provindos dessa cultura que vê a morte como algo pesado e não como algo natural que chegará à todos algum dia.
Nelciely da Silva Akutsu
ótimo texto, você acredita que a reflexão sobre a morte na antiguidade poder ser uma boa estratégia para fazer com que os alunos a pense sobre temas mais existencialistas? já que muitos alunos por pertencerem a famílias religiosas acabam por fugir desse tema.
ResponderExcluirCarlos Eduardo Ferreira Alves