Alessandra Serra Viegas

 

“MULHERES VIRTUOSAS” À VOLTA DO MEDITERRÂNEO ANTIGO: HEBREIAS, CANANEIAS, EGÍPCIAS E AS POSSIBILIDADES PARA O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA


 

Quem é a mulher virtuosa à volta do Mediterrâneo?

O presente texto é uma proposta de trabalho para levar às aulas de História Antiga presenciais ou virtuais um estudo para refletirmos com os alunos sobre o lugar de fala e de ação das mulheres do Antigo Oriente Próximo (AOP) e à volta do Mediterrâneo a partir de textos seletos do Antigo (ou Primeiro) Testamento. Esse contato é interessante e importante para que, desde então, os textos sejam apresentados como objeto de estudo histórico-literário acerca da cultura de um povo, a fim de desconstruirmos algumas falas do tipo: “a bíblia é opressora e machista!” ou “as mulheres não tinham valor algum naquela época e por isso esse comportamento é reproduzido hoje na sociedade!”.

 

A questão que grita (ou deveria obrigatoriamente gritar) a plenos pulmões na mente do(a) historiador(a) – especificamente o(a) pesquisador(a) e/ou professor(a) de História Antiga – é que não podemos cometer anacronismos, inserindo nos textos da Antiguidade, sejam de que cultura forem: gregos, sumérios, latinos, judaicos, egípcios, entre outros categorias e ideais de pensamento e de comportamento da modernidade e da contemporaneidade. Estamos lidando com outro tempo e com outra cultura e, para tanto, precisamos entender isso primeiro para depois falar sobre. Estamos distantes. E é preciso se aproximar a partir da língua e do ethos (o modus vivendi, o conjunto de maneiras de viver) do(s) povo(s) com que queremos trabalhar em sala junto aos estudantes.

 

Comecemos pela importância de: 1) conhecer o contexto social de produção do texto que vamos pesquisar; 2) saber a língua original do texto; 3) ter o mínimo para fazer a tradução do texto ou, pelo menos, dos termos mais destacados. Isso já faz uma enorme diferença. Há um trecho em particular encontrado no Antigo Testamento, que encerra o livro de Provérbios de Salomão, o qual cita a “mulher virtuosa”, apontando quem é esta mulher e o que ela faz, isto é, que características ela precisa possuir e como contribui para o desenvolvimento da comunidade à sua volta, qual seja, a sociedade hebraica da época tratada – o período pós-exílico do povo hebreu, séculos V–III a.C.  Este é o momento  em que povo de Judá (agora chamados de judeus) retornam do exílio da Babilônia, sob a ordem de Ciro da Pérsia. Ocorrem, daí, a reconstrução e o repatriamento do povo, do qual grande parte eram mulheres, fora os estrangeiros que também vieram. Vamos ao texto.

 

 

A “virtuosa” de Provérbios 31, uma mulher sem nome na sociedade hebraica

A maioria das bíblias em língua portuguesa traduz o texto de Provérbios 31,10 como: “Mulher virtuosa, quem a achará? O seu valor muito excede o de finas joias”. No entanto, no texto hebraico da TaNaK (o Antigo Testamento) a palavra para virtuosa é hayil, que significa forte, valente, armada, eficiente, cheia de vigor, viril (ALONSO SCHÖKEL, 1997, p. 217-218). Esse é um dado importante para uma exegese correta do texto, a partir de seu original. A mulher de Provérbios 31, que é a representação poética de todas as mulheres de sua época, é utilizada como paradigmática para nós hoje, mulheres que recebemos a toda a influência e a educação religiosa da cultura judaico-cristã. Ela é uma mulher cuja descrição se parece com a mulher do século XXI, que tem jornada dupla ou tripla e merece ser honrada por isso pelo homem que caminha junto a ela. Ela é virtuosa, sim, contudo no sentido de forte, batalhadora, senhora de si e conhecedora de seu valor, influência e importância na sociedade em que está inserida. Veja, no texto completo, quem é essa mulher cheia de força e vigor e repare em alguém que corre atrás com todas as forças que possui. Ela trabalha fora, é empreendedora, é investidora, trata de negócios com os homens. E o seu marido confia nela e a louva, junto com os filhos, reconhecendo seu valor. Será que isso é lido com atenção por aqueles que dizem que a bíblia é machista?

 

Mulher virtuosa, quem a achará? O seu valor muito excede o de finas joias.

O coração do seu marido confia nela, e não haverá falta de ganho.

Ela lhe faz bem, e não mal, todos os dias de sua vida.

Busca lã e linho e de bom grado trabalha com as mãos.

É como o navio mercante: de longe traz o seu pão.

É ainda noite, e já se levanta, e dá mantimento à sua casa e tarefa às suas servas.

Examina uma propriedade e adquire-a; planta uma vinha com as rendas do seu trabalho.

Cinge os lombos de força e fortalece os braços.

Ela percebe que o seu ganho é bom; a sua lâmpada não se apaga de noite.

Estende as mãos ao fuso, mãos que pegam na roca.

Abre a mão ao aflito e ainda a estende ao necessitado.

No tocante à sua casa, não teme a neve, pois todos andam vestidos de lã escarlate.

Faz para si cobertas, veste-se de linho fino e de púrpura.

Seu marido é estimado entre os juízes, quando se assenta com os anciãos da terra.

Ela faz roupas de linho fino, e vende-as, e dá cintas aos mercadores.

A força e a dignidade são os seus vestidos, e quanto ao dia de amanhã, não tem preocupações.

Fala com sabedoria, e a instrução da bondade está na sua língua.

Atende ao bom andamento da sua casa, e não come o pão da preguiça.

Levantam-se seus filhos e lhe chamam ditosa; seu marido a louva, dizendo:

Muitas mulheres procedem virtuosamente, mas tu a todas sobrepujas.

Enganosa é a graça, e vã a formosura, mas a mulher que teme ao Senhor, essa será louvada.

Dai-lhe do fruto de suas mãos, e de público a louvarão as suas obras” (Provérbios 31,10-31).

 

O livro de Provérbios é uma compilação de várias seções, sendo uma parte do livro mais antiga, enquanto o restante é situado na segunda metade do século III a.C. Por ser parte integrante da literatura sapiencial do povo hebreu, destaca-se o elemento pedagógico do texto, o seu ensino. Os mais velhos, detentores da sabedoria prática, que tinham recolhido de sua vida e experiência pessoais e da observação da vida dos outros, ensinavam aos jovens saudáveis conselhos. Numa sociedade que lemos como fortemente patriarcal, instiga-nos a construção poética dessa anônima mulher modelo do capítulo 31:

 

 “Assim como a Sabedoria é melhor do que as joias (Provérbios 8), assim uma mulher forte vale também mais do que pérolas. (...). Essa mulher forte faz o que o bom israelita  [o homem] deve fazer: reparte generosamente com os pobres e necessitados. Fala com sabedoria e com bondade. É inteligente, prudente, e sabe julgar [o julgamento cabe ao universo masculino, quando se assenta às portas da cidade, ou quando precisa tomar uma decisão para o beneficiamento de sua família, pois ele é o cabeça], mulher que possui bom senso para os negócios [lembremos das mulheres egípcias, que vão aos mercados, assim como veremos essa mulher no trato com os homens, os mercadores], que merece o respeito não só da família mas também dos oficiais da cidade” (LAFFEY, 1994, p. 279-280).

 

Vale destacar que na LXX, na Versão dos Setenta, isto é, na tradução da TaNaK para o grego koiné do período helenístico, para compor a Biblioteca de Alexandria, o texto grego conserva o campo semântico do hebraico e utiliza para a mulher (gynaika) o adjetivo grego andreian, o qual significa valente, corajosa, forte, viril (BAILLY, 2000, p. 148-149), isto é, elementos pertencentes ao universo masculino, pois o próprio adjetivo aqui se torna uma espécie de trocadilho grego, pois andreian deriva do substantivo anér, cujo genitivo é andrósrelativo ao campo semântico do homem, no sentido de macho, varão, aquele que possui virilidade e força. Não está no campo do ánthropos, o homem no sentido de humanidade que, como coletivo, também pode servir para a mulher, quando citada como espécie humana. A mulher “virtuosa” do texto da LXX também é a mulher viril. No mínimo interessante para iniciar uma discussão e boas reflexões, não? Vejamos mais duas mulheres do texto bíblico que podem suscitar boas conversas em sala sobre o respeito à diversidade, ao outro que é diferente de mim, que está fora das categorias “dentro da caixinha”.

 

Agar, uma mulher egípcia na sociedade hebraica

O que pensar do que se diria de uma mulher que se torna escrava sexual de um homem cuja esposa já é idosa e não pode ter filhos? Uma mulher que vai funcionar como uma “barriga de aluguel”? E tem mais: essa mulher é uma egípcia no meio dos hebreus... pertence a um povo não muito bem visto por eles. Pois é, Agar é essa mulher. Mulher que, não de espontânea vontade, vai parar na cama do patriarca Abraão, para gerar um filho que, pelo plano arquitetado, não seria dela, mas da sua senhora e dona, Sara. Mas o desfecho dessa saga familiar é totalmente inusitado!

 

De Abraão e Sara certamente você já ouviu falar. São o patriarca e a matriarca do povo hebreu. Mas e Agar, já a conhecia? Pois é, o texto prega uma peça para os leitores e coloca Agar como uma mulher exemplar em seu caráter com uma experiência única, interessante e profundamente cativante com o Deus dos... hebreus! O que será que esse texto quer nos dizer com isso? Há o Deus de um povo que se revela a uma escrava estrangeira? É preciso valorizar o outro a despeito de quem seja, ou do que tenha a oferecer? Questões para refletir.

 

De onde surgiu Agar? É uma escrava que provavelmente foi dada a Sara como na ocasião em que o Faraó a tomou para o seu harém quando Abraão teve medo de dizer que era marido dela e mentiu. Ou Agar foi dada a Abraão como presente do Faraó por este ter ficado com Sara no harém (Gênesis 12,10-20). Aqui já temos uma denúncia de um erro grave e o texto não faz nenhuma questão de encobrir os fatos que envolveram essa família. E lá está a estrangeira, egípcia, escrava, que a nada tem direito. Vamos aos textos referentes a Agar (e também a Abraão) e às surpresas que eles nos revelam. 

 

“Ora Sarai, mulher de Abrão, não lhe dava filhos, e ele tinha uma serva egípcia, cujo nome era Agar. E disse Sarai a Abrão: Eis que o Senhor me tem impedido de dar à luz; toma, pois, a minha serva; porventura terei filhos dela. E ouviu Abrão a voz de Sarai. Assim tomou Sarai, mulher de Abrão, a Agar egípcia, sua serva, e deu-a por mulher a Abrão seu marido, ao fim de dez anos que Abrão habitara na terra de Canaã. E ele possuiu a Agar, e ela concebeu; e vendo ela que concebera, foi sua senhora desprezada aos seus olhos. Então disse Sarai a Abrão: Meu agravo seja sobre ti; minha serva pus eu em teu regaço; vendo ela agora que concebeu, sou menosprezada aos seus olhos; o Senhor julgue entre mim e ti. E disse Abrão a Sarai: Eis que tua serva está na tua mão; faze-lhe o que bom é aos teus olhos. E afligiu-a Sarai, e ela fugiu de sua face.

E o anjo do Senhor a achou junto a uma fonte de água no deserto, junto à fonte no caminho de Sur. E disse: Agar, serva de Sarai, donde vens, e para onde vais? E ela disse: Venho fugida da face de Sarai minha senhora. Então lhe disse o anjo do SENHOR: Torna-te para tua senhora, e humilha-te debaixo de suas mãos. Disse-lhe mais o anjo do Senhor: Multiplicarei sobremaneira a tua descendência, que não será contada, por numerosa que será. Disse-lhe também o anjo do Senhor: Eis que concebeste, e darás à luz um filho, e chamarás o seu nome Ismael; porquanto o Senhor ouviu a tua aflição. E ele será homem feroz, e a sua mão será contra todos, e a mão de todos contra ele; e habitará diante da face de todos os seus irmãos.

E ela chamou o nome do Senhor, que com ela falava: Tu és Deus que me vê; porque disse: Não olhei eu também para aquele que me vê? Por isso se chama aquele poço de Beer-Laai-Rói; eis que está entre Cades e Berede.

E Agar deu à luz um filho a Abrão; e Abrão chamou o nome do seu filho que Agar tivera, Ismael. E era Abrão da idade de oitenta e seis anos, quando Agar deu à luz Ismael” (Gênesis 16,1-16):

 

“E o SENHOR visitou a Sara, como tinha dito; e fez o SENHOR a Sara como tinha prometido. E concebeu Sara, e deu a Abraão um filho na sua velhice, ao tempo determinado, que Deus lhe tinha falado. E Abraão pôs no filho que lhe nascera, que Sara lhe dera, o nome de Isaque. E Abraão circuncidou o seu filho Isaque, quando era da idade de oito dias, como Deus lhe tinha ordenado. E era Abraão da idade de cem anos, quando lhe nasceu Isaque seu filho. E disse Sara: Deus me tem feito riso; todo aquele que o ouvir se rirá comigo. Disse mais: Quem diria a Abraão que Sara daria de mamar a filhos? Pois lhe dei um filho na sua velhice.

E cresceu o menino, e foi desmamado; então Abraão fez um grande banquete no dia em que Isaque foi desmamado. E viu Sara que o filho de Agar, a egípcia, o qual tinha dado a Abraão, zombava.

E disse a Abraão: Ponha fora esta serva e o seu filho; porque o filho desta serva não herdará com Isaque, meu filho. E pareceu esta palavra muito má aos olhos de Abraão, por causa de seu filho. Porém Deus disse a Abraão: Não te pareça mal aos teus olhos acerca do moço e acerca da tua serva; em tudo o que Sara te diz, ouve a sua voz; porque em Isaque será chamada a tua descendência. Mas também do filho desta serva farei uma nação, porquanto é tua descendência.

Então se levantou Abraão pela manhã de madrugada, e tomou pão e um odre de água e os deu a Agar, pondo-os sobre o seu ombro; também lhe deu o menino e despediu-a; e ela partiu, andando errante no deserto de Berseba.

E consumida a água do odre, lançou o menino debaixo de uma das árvores. E foi assentar-se em frente, afastando-se à distância de um tiro de arco; porque dizia: Que eu não veja morrer o menino. E assentou-se em frente, e levantou a sua voz, e chorou. E ouviu Deus a voz do menino, e bradou o anjo de Deus a Agar desde os céus, e disse-lhe: Que tens, Agar? Não temas, porque Deus ouviu a voz do menino desde o lugar onde está. Ergue-te, levanta o menino e pega-lhe pela mão, porque dele farei uma grande nação. E abriu-lhe Deus os olhos, e viu um poço de água; e foi encher o odre de água, e deu de beber ao menino. E era Deus com o menino, que cresceu; e habitou no deserto, e foi flecheiro. E habitou no deserto de Parã; e sua mãe tomou-lhe mulher da terra do Egito” (Gênesis 21,9-21).

 

O que aconteceu de especial a essa escrava estrangeira? a) Agar ouviu e falou com o anjo do Senhor por duas vezes (Gênesis 16,8-12; 21,17-18). E obedeceu à fala do anjo (Gênesis 16,15-16; 21,19); b) Agar recebeu a promessa de descendência numerosa (Gênesis 16,10; 21,18). A mesmíssima promessa de bênção dada a Abraão em Gênesis 13,16; 17,2. Seu nome não seria apagado da memória (Gênesis 21,13 – Abraão fica sabendo que a bênção não é exclusividade dele. Agar também a recebe!); c) Agar olhou para a divindade que a viu. E deu um nome à divindade a partir dessa experiência por que passou (Gênesis 16,13); d) Agar obteve água e sustento no deserto de forma miraculosa (Gênesis 21,19-20); e) Agar ganhou no deserto a liberdade e foi para a sua terra, o Egito, não mais sendo escrava, e dando continuidade à sua descendência (Gênesis 21,21). Ela é a referência, através de Ismael, para o surgimento do povo árabe.

 

Sim, em Agar estamos falando do mesmo modelo de mulher: forte e batalhadora, a virtuosa, merecedora de um registro de louvor e exaltação à sua figura na construção do discurso literário, pela palavra que impregna toda a dinâmica da sociedade, sim, por essa palavra, que “será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais” (BACCEGA, 1995, p. 64) efetuadas no campo das relações humanas.

 

Tamar, uma mulher cananeia na sociedade hebraica  

O terceiro e último texto que queremos apresentar é o texto que apresenta outra estrangeira no meio dos hebreus e que dá um enorme exemplo de piedade. Ela pode até mesmo ser considerada uma heroína. Tamar é uma cananeia que irá seduzir o próprio sogro, Judá, tendo um filho dele, isto é, mantendo a descendência e o não permitindo que o nome da família se encerre. O mais incrível: este é um relato do primeiro livro do Antigo Testamento, o Gênesis, e nossa Tamar aparecerá nomeada na genealogia de Jesus, no evangelho de Mateus, primeiro livro do Novo Testamento. O nome dela e o que fez ficou na história!

 

Algumas narrativas do Antigo Testamento distinguem mulheres que são notáveis pelo jogo de sedução de que se utilizam para conseguirem o que desejam ou necessitam. Tais fatos, vistos em seu contexto, envolvem e apontam uma perspectiva de continuidade: a manutenção da vida e da descendência. Assim, os textos assinalados como aqueles de “mulheres sedutoras”, incluem até mesmo detalhes do que elas elaboram e efetivamente realizam. Interessa à tessitura da intriga narrativa o motivo pelo qual seduzem, e os ritos que praticam, os quais são ratificados e elogiados pelo narrador – o qual aponta para as cenas íntimas o foco narrativo, como se fosse um holofote. Geralmente, tais textos, a partir do gênero literário, são classificados como uma novela. No entanto, a especificidade desses textos permite classificá-los dentro do gênero literário do jogo de sedução.

 

Explicando: um gênero literário se constitui a partir da existência de dois ou mais textos que apresentem características semelhantes entre as quais se possa estabelecer uma comparação (LIMA, 2014, p. 123, 172). O jogo de sedução, por ocorrer em vários textos do Antigo Testamento, pode ser considerado, segundo essa proposição, um gênero literário. As heroínas do Antigo Testamento podem ser inseridas em três categorias ao tomá-las como objeto de estudo: a Mãe do herói, a Sedutora, a Mulher estrangeira. De acordo com a narrativa ou texto poético selecionado, essas características vão sendo percebidas e postas nas categorias às quais se assemelham (BRENNER, 2001, p. 133-169). 

 

Ainda, os elementos literários do jogo de sedução compreendem: a) Mulheres estrangeiras; b) A sedução de um parente varão com o propósito de gerar um herdeiro varão; c) A continuação da linhagem de sangue mediante as relações sexuais ou o casamento com um parente homem; d) A avaliação positiva do autor ou narrador sobre a iniciativa da mulher; e) Comida e bebida envolvidas na cena; f) Preparação da mulher para o jogo de sedução; g) Ambiente propício para que aconteça a sedução – um lugar reservado e h) Momento propício – à noite, quando há penumbra (BRENNER, 2002, p. 106-107). Vejamos o texto e percebamos onde se encontram os elementos aqui elencados.

 

“E aconteceu no mesmo tempo que Judá desceu de entre seus irmãos e entrou na casa de um homem de Adulão, cujo nome era Hira, E viu Judá ali a filha de um homem cananeu, cujo nome era Sua; e tomou-a por mulher, e a possuiu. E ela concebeu e deu à luz um filho, e chamou-lhe Her. E tornou a conceber e deu à luz um filho, e chamou-lhe Onã. E continuou ainda e deu à luz um filho, e chamou-lhe Selá; e Judá estava em Quezibe, quando ela o deu à luz.

Judá tomou uma mulher para Her, o seu primogênito, e o seu nome era Tamar. Her, porém, o primogênito de Judá, era mau aos olhos do SENHOR, por isso o SENHOR o matou. Então disse Judá a Onã: Toma a mulher do teu irmão, e casa-te com ela, e suscita descendência a teu irmão. Onã, porém, soube que esta descendência não havia de ser para ele; e aconteceu que, quando possuía a mulher de seu irmão, derramava o sêmen na terra, para não dar descendência a seu irmão. E o que fazia era mau aos olhos do SENHOR, pelo que também o matou.

Então disse Judá a Tamar sua nora: Fica-te viúva na casa de teu pai, até que Selá, meu filho, seja grande. Porquanto disse: Para que porventura não morra também este, como seus irmãos. Assim se foi Tamar e ficou na casa de seu pai.

Passando-se pois muitos dias, morreu a filha de Sua, mulher de Judá; e depois de consolado, Judá subiu aos tosquiadores das suas ovelhas em Timna, ele e Hira, seu amigo, o adulamita. E deram aviso a Tamar, dizendo: Eis que o teu sogro sobe a Timna, a tosquiar as suas ovelhas. Então ela tirou de sobre si os vestidos da sua viuvez e cobriu-se com o véu, e envolveu-se, e assentou-se à entrada das duas fontes que estão no caminho de Timna, porque via que Selá já era grande, e ela não lhe fora dada por mulher. E vendo-a Judá, teve-a por uma prostituta, porque ela tinha coberto o seu rosto. E dirigiu-se a ela no caminho, e disse: Vem, peço-te, deixa-me possuir-te. Porquanto não sabia que era sua nora. E ela disse: Que darás, para que possuas a mim? E ele disse: Eu te enviarei um cabrito do rebanho. E ela disse: Dar-me-ás penhor até que o envies? Então ele disse: Que penhor é que te darei? E ela disse: O teu selo, e o teu cordão, e o cajado que está em tua mão. O que ele lhe deu, e possuiu-a, e ela concebeu dele.

E ela se levantou, e se foi e tirou de sobre si o seu véu, e vestiu os vestidos da sua viuvez. E Judá enviou o cabrito por mão do seu amigo, o adulamita, para tomar o penhor da mão da mulher; porém não a achou. E perguntou aos homens daquele lugar, dizendo: Onde está a prostituta que estava no caminho junto às duas fontes? E disseram: Aqui não esteve prostituta alguma. E tornou-se a Judá e disse: Não a achei; e também disseram os homens daquele lugar: Aqui não esteve prostituta. Então disse Judá: Deixa-a ficar com o penhor, para que porventura não caiamos em desprezo; eis que tenho enviado este cabrito; mas tu não a achaste.

E aconteceu que, quase três meses depois, deram aviso a Judá, dizendo: Tamar, tua nora, adulterou, e eis que está grávida do adultério. Então disse Judá: Tirai-a fora para que seja queimada. E tirando-a fora, ela mandou dizer a seu sogro: Do homem de quem são estas coisas eu concebi. E ela disse mais: Conhece, peço-te, de quem é este selo, e este cordão, e este cajado. E conheceu-os Judá e disse: Mais justa é ela do que eu, porquanto não a tenho dado a Selá meu filho. E nunca mais a conheceu [= deitou-se com ela]” (Gênesis 38,1-26).

 

No relato acerca de Tamar e Judá: a) Tamar é estrangeira (Gênesis 38,1-2.6); b) seduzirá um parente varão – o sogro – vestindo-se como prostituta (Gênesis 38,15-16); c) Tamar se prepara (tira suas vestes de viuvez) para receber Judá e, através dele, do sogro, (Gênesis 38,14); d) dar continuidade à linhagem de sangue que pertence a seu filho, Her, que morrera; (Gênesis 38,14.26); e) encontram-se em um lugar reservado na entrada de Enaim para terem relações sexuais. Infira-se ao texto o fato de Judá estar consolado da morte da esposa e envolvido na viagem com Hira para a tosquia das ovelhas, (Gênesis 38,12-18); f) momento que continha uma festividade, onde se beberia vinho naturalmente (Gênesis 38,12), e Judá pode ter bebido antes de estar com Tamar (CARMICHAEL, 1979, p. 76-78); g) Judá fará, posteriormente, a análise positiva acerca de Tamar. (Gênesis 38,26)

 

O texto é bastante claro e nos mostra que Tamar seduz o homem a quem ela escolhe para dar um herdeiro, sob o rigor da lei do levirato, cumprida pelos hebreus – rito no qual o irmão (na falta deste um parente próximo) do morto precisa ter relações com a viúva para suscitar descendência ao nome do morto. Uma vez que Selá está vivo e não realiza o rito, Tamar permanece presa à família de Judá pela lei. Por isso, ela age com o objetivo de tornar-se mãe. O que essa mulher faz é usar as amarras patriarcais em seu próprio favor e ser ancestral tanto da dinastia do rei David, quanto de Jesus. A originalidade subversiva que ela demonstra ao enfrentar uma situação de sobrevivência é tanto respeitada pelos homens que temem ao Deus de Israel, quanto abençoada pelo próprio Deus (BRENNER, 2002, p. 172) e colocada como modelo de obediência na fala do homem da cena, Judá (um detalhe: ele é bisneto de Abraão): “Mais justa é ela do que eu...”. Este é mais um relato que nos desafia para repensarmos como vemos a Antiguidade e os textos que nela eram produzidos, primeiro como literatura oral, depois como registro escrito e arcabouço cultural de um povo.

 

Para não concluir agora: porque essa questão precisa continuar...

Este breve estudo pretendeu apontar as características de textos seletos do Antigo Testamento, a fim de assinalar algumas “mulheres virtuosas” cuja construção literária aponta a força de um texto feminino e revolucionário, no qual tais mulheres são caracterizadas como justas ou heroínas, o que se expõe ainda mais quando essas mulheres são batalhadoras e/ou estrangeiras, ainda que em uma cultura patriarcal. O que se pode perceber é que há um embate contra esse domínio do masculino. Aí está a riqueza do texto bíblico. Ele é compósito. Mas não deixa de registrar mulheres que não fugiram à luta e que não são sexo frágil. Mulheres corajosas. Mulheres exemplares. Mulheres de valor. Mulheres que têm vez e voz naquela sociedade, mesmo que hoje alguns “leitores” façam uso dos mesmos textos e tentem de todos os meios calar a voz e tirar a vez delas.

 

Vamos encerrar por ora com mais um texto antigo. Platão, na República, demonstra-nos Sócrates (ou será a própria opinião de Platão?) falando do trato e do respeito que deve ser dispensado às mulheres pelos homens. O filósofo utiliza-se de seu argumento dos contrários, comparando tal tratamento aos dispensados aos animais, colocando estes – machos e fêmeas – em posição de igualdade, para que Glauco [o interlocutor do diálogo] reflita sobre a posição das mulheres como seres iguais. Para tanto, indaga-lhe Sócrates:

 

“ – Está o trabalho dos cães dividido entre os sexos, ou ambos participam igualmente da caça, do serviço de guarda e dos outros deveres caninos? Ou será que confiamos exclusivamente aos machos o cuidado do rebanho e deixamos as fêmeas em casa, na suposição de que os partos e a criação dos filhotes seja ocupação suficiente para elas?

– Não – disse ele [Glauco] – fazem tudo em comum” (PLATÃO. República, 451d-e).

 

Platão, ainda, no mesmo livro, na continuação do diálogo de Sócrates com Glauco, propõe que a mulher faça parte do quadro de guardiães da cidade, pondo-a claramente, e não através de figuras, na mesma posição dos homens:

 

“– Tanto homens quanto mulheres possuem as qualidades que fazem um guardião, diferindo apenas quanto à força ou fraqueza relativa.

– Assim parece.

– E as mulheres que possuem tais qualidades devem ser escolhidas como companheiras e colegas dos homens da mesma classe, aos quais se assemelham pelo caráter e pelas aptidões?

– Evidentemente.

– E não convém dar os mesmos encargos às mesmas naturezas?

– Os mesmos.” (PLATÃO, República, 456a-b)

 

Se continuarmos procurando, tirando de nós nossas ideias preconcebidas quanto às relações interpessoais da Antiguidade e o senso comum de que “era assim mesmo naquela época o patriarcado em todo lugar”, encontraremos uma série de exemplos que demonstram o respeito e a condição de igualdade/paridade dada à mulher ao lado do homem. É possível mesmo que a encontremos em posição de superioridade nas cosmologias e mitologias sumérias, babilônicas, egípcias, gregas e romanas. Nosso objetivo, no entanto, no momento, foi apenas aguçar e fazer brotar reflexões sobre o tema no intuito de iniciar pesquisas mais profundas. Mas para tal, é imprescindível retirarmos os “óculos” dos discursos construídos ao longo da história, que carregam em seu bojo preconceitos e desigualdades, e inserirmo-nos nas teias relacionais das sociedades que queremos pesquisar de modo sério, com total lisura e rigor acadêmico.

 

Referências biográficas

Dra. Alessandra Serra Viegas professora da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro e do Seminário Metodista César Dacorso Filho.

 

Referências bibliográficas

ALONSO SCHÖKEL, L. Dicionário bíblico hebraico-português. Trad.: Ivo Storniolo, José Bortolini. São Paulo: Paulus, 1997.

 

BACCEGA, M. A. Palavra e discurso – história e literatura. São Paulo: Ática, 1995. (Série Princípios).

 

BAILLY, A. Dictionnaire grec-français. Paris: Hachette, 2000.

 

BIBLIA. Grego. Septuaginta. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1979.

 

BÍBLIA. Hebraico. Biblia Hebraica Stuttgartensia. 4. ed. enend. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellchaft, 1990.

 

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.

 

BRENNER, A. A Mulher Israelita: Papel Social e Modelo Literário na Narrativa Bíblica. São Paulo: Paulinas, 2001.

 

BRENNER, A. (org.). Rute a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2002,

 

CARMICHAEL, C. Women, Law and the Genesis: Traditions, Edinburg: Edinburg University Press, 1979.

 

LAFFEY, A. Introdução ao Antigo Testamento – perspectiva feminista. São Paulo: Paulus, 1994.

 

LIMA, M. L. C. Exegese bíblica: teoria e prática. São Paulo: Paulinas, 2014.

 

PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 9ª. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

14 comentários:

  1. Respostas
    1. Muito obrigada! Estou à disposição para contribuições e perguntas!

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  2. Primeiramente, parabéns pelo seu trabalho. Você conseguiu atingir bem seus objetivos e conectar os estudos sobre as mulheres na Antiguidade de forma muito didática e possível de ser discutida em sala de aula. Minha pergunta tem conexão com o texto, mas extrapola um pouco. Se é de seu conhecimento, gostaria de saber o que você acha sobre a representação das mulheres nas produções cinematográficas ou telenovelas (principalmente brasileiras) que tem como pano de fundo temas relacionados à Bíblia?

    Mateus Delalibera

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    1. Mateus!!!
      Muito obrigada por sua contribuição comentando o texto!
      Sobre a pergunta, vamos lá: a meu ver, a representação das mulheres no cinema e nas telenovelas relacionadas aos temas bíblicos parece seguir o modelo patriarcal e, quando a mulher "sai da caixinha", um jogo de oposição masculino/feminino parece acontecer aos olhos do espectador. Não se vê um modelo paritário, tampouco uma mulher elogiada por seu valor (elogios geralmente são somente por beleza física).
      Extrapolando também um pouquinho: outro fato que incomoda bastante e está muito fora da realidade das características étnicas, é uma Cleópatra representada por Elizabeth Taylor no cinema, e telenovelas representando mulheres do Egito que não são negras. Essa tentativa de embranquecimento e europeização do Egito, propositadamente deslocando-o do norte da África também precisa figurar nas aulas de História Antiga para discussão e reflexão com os estudantes.

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  3. Olá Alessandra, sua pesquisa está excelente. Gostaria de saber, sua visão a respeito da imagem da mulher na sala de aula, mais especificamente no livro didático. Seria possível na sua opinião, levar as mulheres citadas no texto para um trabalho no qual englobe a questão feminina na história em sala de aula?

    Jayza Monteiro Almeida

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    1. Olá Jayza!
      Muito obrigada!
      Os livros didáticos sempre procuraram reproduzir a fala dominante da sociedade ou o senso comum, isto é, poucas mulheres têm vez e voz. E ao falar da bíblia então, o pensamento é retrógrado ou coisa pior. Por isso, eu quis escrever este texto. Creio que seja plenamente possível trabalhar com ele e com estas mulheres em uma discussão em sala de aula. Assim como falar de outras mulheres da Antiguidade, na Grécia e em Roma, por exemplo.

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  4. Olá Alessandra,
    Gostei do teu texto, e queria te perguntar sobre uma maneira que você sugere de levar essa discursão para a sala de aula, qual seria a melhor forma?

    Rafaela Lima de Souza

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    1. Olá Rafaela!
      Muito obrigada!
      Creio que uma conversa anterior com os estudantes seria importante. Alguns poderiam levar bíblias católicas ou protestantes e, a partir daí, começar por uma leitura aberta dos textos.
      Ao mesmo tempo, poderia deixar que eles falassem se conhecem textos religiosos ou com elementos mitológicos em que se vê a paridade masculino/feminino. Tais textos também poderiam ser levados para discussão. Esse seria um começo interessante!

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  5. Olá Alessandra
    Parabéns pelo seu trabalho, ótima essa abordagem sobre a mulher nos textos bíblicos. Após esse trabalho mostrando como a mulher é exaltada nos textos bíblicos, gostaria de saber qual é seu pensamento sobre a sexualização da mulher na "cultura' atual brasileira, principalmente nas letras de musicas da nova geração de artistas?

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    1. Olá Fernando!!!
      Muito obrigada!!!
      Excelente sua pergunta! Creio que a exacerbação da questão física do corpo feminino e essa sexualização, como você bem colocou, é resposta ao que estamos vivendo no microcosmo já há algum tempo. Aquelas mães que diziam: "guardem suas cabras que meu bode está solto!"; os filmes americanos em nossas tvs que mostravam as festinhas de escolas e faculdades; os filmes brasileiros com muito nu feminino, os comerciais de cerveja colocando-a "tão gostosa" quanto a mulher e por aí vai... assim, o que temos hoje parece ser a replicação de tudo isso. Unido, é claro, à desvalorização da mulher como ser pensante e dotado de opinião.

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  6. Boa noite Alessandra,
    Acredito que esse estudo e abordagem desse tema, pode ser relevante, na sociedade atual contemporânea, gostaria de saber como vc ver a mulher atual do século 21, no contexto social.


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    1. Boa tarde Mara!
      Muito obrigada!
      Vejo a mulher do século 21 muito semelhante à mulher de Provérbios 31 no que diz respeito à jornada dupla ou tripla. Uma mulher forte que trabalha dentro e fora de casa, lutando o tempo todo. A diferença é a falta de valorização da nossa sociedade que está em contato essa mulher.

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  7. ola Alessandra
    Gostei muito a maneira como você abordou esse tema no seu texto, a mulher moderna apesar de ter conquistado muitos direitos, ainda sofre com preconceitos, gostaria de saber quais suas perspectivas, no que si refere a direitos da mulher e como podemos conquista mais espaço, sem perdermos a essência da mulher que é exposto no texto.

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    1. Olá Mara!
      Muito obrigada por esta segunda colocação sua!
      Creio que nossas leituras precisam mudar. Nossa forma de interpretar o que lemos. Nossa hermenêutica dos textos. Assim como eu tirei esses exemplos da bíblia para trazer reflexão, muitos tiram textos da mesma bíblia para opressão e escravização. Assim como algumas cenas do filme "O livro de Eli".
      Somos professores e formadores de opinião. Por isso precisamos ler os textos e libertar nossas mentes e as mentes dos estudantes através de uma reflexão crítica de tudo que lemos. Há muitos textos da Antiguidade que permitem isso: ver mulheres à frente do seu tempo. Busque esses textos e leve para a sala de aula! Mesmo que seja virtual!

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