“MULHERES VIRTUOSAS” À VOLTA DO MEDITERRÂNEO ANTIGO: HEBREIAS,
CANANEIAS, EGÍPCIAS E AS POSSIBILIDADES PARA O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA
Quem é a mulher virtuosa à volta do Mediterrâneo?
O presente texto é uma proposta de trabalho para levar às aulas de
História Antiga presenciais ou virtuais um estudo para refletirmos com os
alunos sobre o lugar de fala e de ação das mulheres do Antigo Oriente Próximo
(AOP) e à volta do Mediterrâneo a partir de textos seletos do Antigo (ou
Primeiro) Testamento. Esse contato é interessante e importante para que, desde
então, os textos sejam apresentados como objeto de estudo histórico-literário
acerca da cultura de um povo, a fim de desconstruirmos algumas falas do tipo:
“a bíblia é opressora e machista!” ou “as mulheres não tinham valor algum
naquela época e por isso esse comportamento é reproduzido hoje na sociedade!”.
A questão que grita (ou deveria obrigatoriamente gritar) a plenos
pulmões na mente do(a) historiador(a) – especificamente o(a) pesquisador(a)
e/ou professor(a) de História Antiga – é que não podemos cometer anacronismos,
inserindo nos textos da Antiguidade, sejam de que cultura forem: gregos,
sumérios, latinos, judaicos, egípcios, entre outros categorias e ideais de
pensamento e de comportamento da modernidade e da contemporaneidade. Estamos
lidando com outro tempo e com outra cultura e, para tanto, precisamos entender
isso primeiro para depois falar sobre. Estamos distantes. E é preciso se
aproximar a partir da língua e do ethos (o modus vivendi,
o conjunto de maneiras de viver) do(s) povo(s) com que queremos trabalhar em
sala junto aos estudantes.
Comecemos pela importância de: 1) conhecer o contexto social de
produção do texto que vamos pesquisar; 2) saber a língua original do texto; 3)
ter o mínimo para fazer a tradução do texto ou, pelo menos, dos termos mais
destacados. Isso já faz uma enorme diferença. Há um trecho em particular
encontrado no Antigo Testamento, que encerra o livro de Provérbios de Salomão,
o qual cita a “mulher virtuosa”, apontando quem é esta mulher e o que
ela faz, isto é, que características ela precisa possuir e como contribui
para o desenvolvimento da comunidade à sua volta, qual seja, a sociedade
hebraica da época tratada – o período pós-exílico do povo hebreu, séculos V–III
a.C. Este é o momento em que povo de Judá (agora chamados de
judeus) retornam do exílio da Babilônia, sob a ordem de Ciro da Pérsia.
Ocorrem, daí, a reconstrução e o repatriamento do povo, do qual grande parte
eram mulheres, fora os estrangeiros que também vieram. Vamos ao texto.
A
“virtuosa” de Provérbios 31, uma mulher sem nome na sociedade hebraica
A maioria
das bíblias em língua portuguesa traduz o texto de Provérbios 31,10 como: “Mulher
virtuosa, quem a achará? O seu valor muito excede o de finas joias”. No
entanto, no texto hebraico da TaNaK (o Antigo Testamento) a palavra para
virtuosa é hayil, que significa forte, valente, armada,
eficiente, cheia de vigor, viril (ALONSO SCHÖKEL, 1997, p. 217-218). Esse é
um dado importante para uma exegese correta do texto, a partir de seu original.
A mulher de Provérbios 31, que é a representação poética de todas as mulheres
de sua época, é utilizada como paradigmática para nós hoje, mulheres que
recebemos a toda a influência e a educação religiosa da cultura judaico-cristã.
Ela é uma mulher cuja descrição se parece com a mulher do século XXI, que tem
jornada dupla ou tripla e merece ser honrada por isso pelo homem que caminha
junto a ela. Ela é virtuosa, sim, contudo no sentido de forte, batalhadora,
senhora de si e conhecedora de seu valor, influência e importância na sociedade
em que está inserida. Veja, no texto completo, quem é essa mulher cheia de
força e vigor e repare em alguém que corre atrás com todas as forças que
possui. Ela trabalha fora, é empreendedora, é investidora, trata de negócios
com os homens. E o seu marido confia nela e a louva, junto com os filhos,
reconhecendo seu valor. Será que isso é lido com atenção por aqueles que dizem
que a bíblia é machista?
“Mulher
virtuosa, quem a achará? O seu valor muito excede o de finas joias.
O coração
do seu marido confia nela, e não haverá falta de ganho.
Ela lhe faz
bem, e não mal, todos os dias de sua vida.
Busca lã e
linho e de bom grado trabalha com as mãos.
É como o
navio mercante: de longe traz o seu pão.
É ainda
noite, e já se levanta, e dá mantimento à sua casa e tarefa às suas servas.
Examina uma
propriedade e adquire-a; planta uma vinha com as rendas do seu trabalho.
Cinge os lombos
de força e fortalece os braços.
Ela percebe
que o seu ganho é bom; a sua lâmpada não se apaga de noite.
Estende as
mãos ao fuso, mãos que pegam na roca.
Abre a mão
ao aflito e ainda a estende ao necessitado.
No tocante
à sua casa, não teme a neve, pois todos andam vestidos de lã escarlate.
Faz para si
cobertas, veste-se de linho fino e de púrpura.
Seu marido
é estimado entre os juízes, quando se assenta com os anciãos da terra.
Ela faz
roupas de linho fino, e vende-as, e dá cintas aos mercadores.
A força e a
dignidade são os seus vestidos, e quanto ao dia de amanhã, não tem
preocupações.
Fala com
sabedoria, e a instrução da bondade está na sua língua.
Atende ao
bom andamento da sua casa, e não come o pão da preguiça.
Levantam-se
seus filhos e lhe chamam ditosa; seu marido a louva, dizendo:
Muitas
mulheres procedem virtuosamente, mas tu a todas sobrepujas.
Enganosa é
a graça, e vã a formosura, mas a mulher que teme ao Senhor, essa será louvada.
Dai-lhe do
fruto de suas mãos, e de público a louvarão as suas obras”
(Provérbios 31,10-31).
O livro de Provérbios é uma compilação de várias seções, sendo uma
parte do livro mais antiga, enquanto o restante é situado na segunda metade do
século III a.C. Por ser parte integrante da literatura sapiencial do povo
hebreu, destaca-se o elemento pedagógico do texto, o seu ensino. Os mais
velhos, detentores da sabedoria prática, que tinham recolhido de sua vida e
experiência pessoais e da observação da vida dos outros, ensinavam aos jovens
saudáveis conselhos. Numa sociedade que lemos como fortemente patriarcal,
instiga-nos a construção poética dessa anônima mulher modelo do capítulo 31:
“Assim como a Sabedoria é melhor do que as joias
(Provérbios 8), assim uma mulher forte vale também mais do que pérolas. (...).
Essa mulher forte faz o que o bom israelita [o homem] deve fazer:
reparte generosamente com os pobres e necessitados. Fala com sabedoria e com
bondade. É inteligente, prudente, e sabe julgar [o julgamento cabe ao
universo masculino, quando se assenta às portas da cidade, ou quando precisa
tomar uma decisão para o beneficiamento de sua família, pois ele é o cabeça],
mulher que possui bom senso para os negócios [lembremos das mulheres
egípcias, que vão aos mercados, assim como veremos essa mulher no trato com os
homens, os mercadores], que merece o respeito não só da família mas também
dos oficiais da cidade” (LAFFEY, 1994, p. 279-280).
Vale destacar que na LXX, na Versão dos Setenta, isto é, na
tradução da TaNaK para o grego koiné do período helenístico, para compor
a Biblioteca de Alexandria, o texto grego conserva o campo semântico do
hebraico e utiliza para a mulher (gynaika) o adjetivo grego andreian,
o qual significa valente, corajosa, forte, viril (BAILLY, 2000, p.
148-149), isto é, elementos pertencentes ao universo masculino, pois o próprio
adjetivo aqui se torna uma espécie de trocadilho grego, pois andreian
deriva do substantivo anér, cujo genitivo é andrósrelativo
ao campo semântico do homem, no sentido de macho, varão, aquele
que possui virilidade e força. Não está no campo do ánthropos, o
homem no sentido de humanidade que, como coletivo, também pode servir
para a mulher, quando citada como espécie humana. A mulher “virtuosa” do texto
da LXX também é a mulher viril. No mínimo interessante para iniciar uma
discussão e boas reflexões, não? Vejamos mais duas mulheres do texto bíblico
que podem suscitar boas conversas em sala sobre o respeito à diversidade, ao
outro que é diferente de mim, que está fora das categorias “dentro da
caixinha”.
Agar, uma
mulher egípcia na sociedade hebraica
O que pensar do que se diria de uma mulher que se torna escrava sexual
de um homem cuja esposa já é idosa e não pode ter filhos? Uma mulher que vai
funcionar como uma “barriga de aluguel”? E tem mais: essa mulher é uma egípcia
no meio dos hebreus... pertence a um povo não muito bem visto por eles. Pois é,
Agar é essa mulher. Mulher que, não de espontânea vontade, vai parar na cama do
patriarca Abraão, para gerar um filho que, pelo plano arquitetado, não seria
dela, mas da sua senhora e dona, Sara. Mas o desfecho dessa saga familiar é
totalmente inusitado!
De Abraão e Sara certamente você já ouviu falar. São o patriarca e
a matriarca do povo hebreu. Mas e Agar, já a conhecia? Pois é, o texto prega
uma peça para os leitores e coloca Agar como uma mulher exemplar em seu caráter
com uma experiência única, interessante e profundamente cativante com o Deus
dos... hebreus! O que será que esse texto quer nos dizer com isso? Há o Deus de
um povo que se revela a uma escrava estrangeira? É preciso valorizar o outro a
despeito de quem seja, ou do que tenha a oferecer? Questões para refletir.
De onde surgiu Agar? É uma escrava que provavelmente foi dada a
Sara como na ocasião em que o Faraó a tomou para o seu harém quando Abraão teve
medo de dizer que era marido dela e mentiu. Ou Agar foi dada a Abraão como
presente do Faraó por este ter ficado com Sara no harém (Gênesis 12,10-20).
Aqui já temos uma denúncia de um erro grave e o texto não faz nenhuma questão
de encobrir os fatos que envolveram essa família. E lá está a estrangeira,
egípcia, escrava, que a nada tem direito. Vamos aos textos referentes a Agar (e
também a Abraão) e às surpresas que eles nos revelam.
“Ora Sarai, mulher de Abrão,
não lhe dava filhos, e ele tinha uma serva egípcia, cujo nome era Agar. E disse Sarai a Abrão: Eis que o Senhor
me tem impedido de dar à luz; toma, pois, a minha serva; porventura terei
filhos dela. E ouviu Abrão a voz de Sarai. Assim tomou Sarai, mulher de Abrão,
a Agar egípcia, sua serva, e deu-a por mulher a Abrão seu marido, ao fim de dez
anos que Abrão habitara na terra de Canaã. E
ele possuiu a Agar, e ela concebeu; e vendo ela que concebera, foi sua senhora
desprezada aos seus olhos. Então disse
Sarai a Abrão: Meu agravo seja sobre ti; minha serva pus eu em teu regaço; vendo
ela agora que concebeu, sou menosprezada aos seus olhos; o Senhor julgue entre
mim e ti. E disse Abrão a Sarai: Eis que
tua serva está na tua mão; faze-lhe o que bom é aos teus olhos. E afligiu-a
Sarai, e ela fugiu de sua face.
E o anjo do Senhor a achou
junto a uma fonte de água no deserto, junto à fonte no caminho de Sur. E disse: Agar, serva de Sarai, donde
vens, e para onde vais? E ela disse: Venho fugida da face de Sarai minha
senhora. Então lhe disse o anjo do
SENHOR: Torna-te para tua senhora, e humilha-te debaixo de suas mãos.
Disse-lhe mais o anjo do Senhor: Multiplicarei
sobremaneira a tua descendência, que não será contada, por numerosa que será.
Disse-lhe também o anjo do Senhor: Eis que
concebeste, e darás à luz um filho, e chamarás o seu nome Ismael; porquanto o
Senhor ouviu a tua aflição. E ele
será homem feroz, e a sua mão será contra todos, e a mão de todos contra ele; e
habitará diante da face de todos os seus irmãos.
E ela chamou o nome do
Senhor, que com ela falava: Tu és Deus que me vê; porque disse: Não olhei eu
também para aquele que me vê? Por isso se chama aquele poço de Beer-Laai-Rói; eis
que está entre Cades e Berede.
E Agar deu à luz um filho
a Abrão; e Abrão chamou o nome do seu filho que Agar tivera, Ismael. E era Abrão da idade de oitenta e seis
anos, quando Agar deu à luz Ismael” (Gênesis 16,1-16):
“E o SENHOR visitou a Sara,
como tinha dito; e fez o SENHOR a Sara como tinha prometido. E concebeu Sara, e deu a Abraão um filho
na sua velhice, ao tempo determinado, que Deus lhe tinha falado. E Abraão pôs no filho que lhe nascera, que Sara lhe
dera, o nome de Isaque. E Abraão
circuncidou o seu filho Isaque, quando era da idade de oito dias, como Deus lhe
tinha ordenado. E era Abraão da idade de
cem anos, quando lhe nasceu Isaque seu filho. E disse Sara: Deus me tem feito riso; todo aquele que o ouvir se rirá
comigo. Disse mais: Quem diria a Abraão
que Sara daria de mamar a filhos? Pois lhe dei um filho na sua velhice.
E cresceu o menino, e foi
desmamado; então Abraão fez um grande banquete no dia em que Isaque foi
desmamado. E viu Sara que
o filho de Agar, a egípcia, o qual tinha dado a Abraão, zombava.
E disse a Abraão: Ponha fora
esta serva e o seu filho; porque o filho desta serva não herdará com Isaque,
meu filho. E pareceu esta
palavra muito má aos olhos de Abraão, por causa de seu filho. Porém Deus disse a Abraão: Não te pareça mal aos teus
olhos acerca do moço e acerca da tua serva; em tudo o que Sara te diz, ouve a
sua voz; porque em Isaque será chamada a tua descendência. Mas também do filho desta serva farei uma nação, porquanto é tua descendência.
Então se levantou Abraão pela
manhã de madrugada, e tomou pão e um odre de água e os deu a Agar, pondo-os
sobre o seu ombro; também lhe deu o menino e despediu-a; e ela partiu,
andando errante no deserto de Berseba.
E consumida a água do odre,
lançou o menino debaixo de uma das árvores. E foi assentar-se em frente, afastando-se à distância
de um tiro de arco; porque dizia: Que eu não veja morrer o menino. E
assentou-se em frente, e levantou a sua voz, e chorou. E ouviu Deus a voz do menino, e bradou o anjo de Deus
a Agar desde os céus, e disse-lhe: Que tens, Agar? Não temas, porque Deus ouviu
a voz do menino desde o lugar onde está. Ergue-te,
levanta o menino e pega-lhe pela mão, porque dele farei uma grande nação.
E abriu-lhe Deus os olhos, e viu um poço de
água; e foi encher o odre de água, e deu de beber ao menino. E era Deus com o menino, que cresceu; e habitou no
deserto, e foi flecheiro. E habitou
no deserto de Parã; e sua mãe tomou-lhe mulher da terra do Egito”
(Gênesis 21,9-21).
O que aconteceu de especial a essa escrava estrangeira? a) Agar
ouviu e falou com o anjo do Senhor por duas vezes (Gênesis 16,8-12; 21,17-18).
E obedeceu à fala do anjo (Gênesis 16,15-16; 21,19); b) Agar recebeu a promessa
de descendência numerosa (Gênesis 16,10; 21,18). A mesmíssima promessa de
bênção dada a Abraão em Gênesis 13,16; 17,2. Seu nome não seria apagado da memória (Gênesis 21,13
– Abraão fica sabendo que a bênção não é exclusividade dele. Agar também a
recebe!); c) Agar olhou para a divindade que a viu. E deu um nome à divindade a
partir dessa experiência por que passou (Gênesis 16,13); d) Agar obteve água e
sustento no deserto de forma miraculosa (Gênesis 21,19-20); e) Agar ganhou no
deserto a liberdade e foi para a sua terra, o Egito, não mais sendo escrava, e
dando continuidade à sua descendência (Gênesis 21,21). Ela é a referência,
através de Ismael, para o surgimento do povo árabe.
Sim, em Agar estamos falando
do mesmo modelo de mulher: forte e batalhadora, a virtuosa, merecedora de um
registro de louvor e exaltação à sua figura na construção do discurso
literário, pela palavra que impregna toda a dinâmica da sociedade, sim, por
essa palavra, que “será sempre o indicador mais sensível de todas as
transformações sociais” (BACCEGA, 1995, p. 64) efetuadas no campo das relações
humanas.
Tamar, uma
mulher cananeia na sociedade hebraica
O terceiro e último texto que queremos apresentar é o texto que
apresenta outra estrangeira no meio dos hebreus e que dá um enorme exemplo de
piedade. Ela pode até mesmo ser considerada uma heroína. Tamar é uma cananeia
que irá seduzir o próprio sogro, Judá, tendo um filho dele, isto é, mantendo a
descendência e o não permitindo que o nome da família se encerre. O mais
incrível: este é um relato do primeiro livro do Antigo Testamento, o Gênesis, e
nossa Tamar aparecerá nomeada na genealogia de Jesus, no evangelho de Mateus,
primeiro livro do Novo Testamento. O nome dela e o que fez ficou na história!
Algumas narrativas do Antigo Testamento distinguem mulheres que
são notáveis pelo jogo de sedução de que se utilizam para
conseguirem o que desejam ou necessitam. Tais fatos, vistos em seu contexto,
envolvem e apontam uma perspectiva de continuidade: a manutenção da vida e da
descendência. Assim, os textos assinalados como aqueles de “mulheres sedutoras”,
incluem até mesmo detalhes do que elas elaboram e efetivamente realizam.
Interessa à tessitura da intriga narrativa o motivo pelo
qual seduzem, e os ritos que praticam, os quais são ratificados e elogiados
pelo narrador – o qual aponta para as cenas íntimas o foco narrativo, como se
fosse um holofote. Geralmente, tais textos, a partir do gênero literário, são
classificados como uma novela. No entanto, a especificidade desses textos
permite classificá-los dentro do gênero literário do jogo de sedução.
Explicando: um gênero literário se constitui a partir da
existência de dois ou mais textos que apresentem características semelhantes
entre as quais se possa estabelecer uma comparação (LIMA, 2014, p. 123, 172). O
jogo de sedução, por ocorrer em vários textos do Antigo Testamento, pode
ser considerado, segundo essa proposição, um gênero literário. As heroínas do
Antigo Testamento podem ser inseridas em três categorias ao tomá-las como
objeto de estudo: a Mãe do herói, a Sedutora, a Mulher estrangeira. De acordo
com a narrativa ou texto poético selecionado, essas características vão sendo
percebidas e postas nas categorias às quais se assemelham (BRENNER, 2001, p.
133-169).
Ainda, os elementos literários do jogo de sedução compreendem:
a) Mulheres estrangeiras; b) A sedução de um parente varão com o propósito de
gerar um herdeiro varão; c) A continuação da linhagem de sangue mediante as
relações sexuais ou o casamento com um parente homem; d) A avaliação positiva
do autor ou narrador sobre a iniciativa da mulher; e) Comida e bebida
envolvidas na cena; f) Preparação da mulher para o jogo de sedução; g) Ambiente
propício para que aconteça a sedução – um lugar reservado e h) Momento propício
– à noite, quando há penumbra (BRENNER, 2002, p. 106-107). Vejamos o texto e
percebamos onde se encontram os elementos aqui elencados.
“E aconteceu no mesmo tempo que Judá desceu de entre seus irmãos e
entrou na casa de um homem de Adulão, cujo nome era Hira, E viu Judá ali
a filha de um homem cananeu, cujo nome era Sua; e tomou-a por mulher, e a
possuiu. E ela concebeu e deu à luz um filho, e chamou-lhe Her. E tornou a
conceber e deu à luz um filho, e chamou-lhe Onã. E continuou ainda e deu à luz
um filho, e chamou-lhe Selá; e Judá estava em Quezibe, quando ela o deu à luz.
Judá tomou uma mulher para Her, o seu primogênito, e o seu
nome era Tamar. Her, porém, o primogênito de Judá, era mau aos olhos do SENHOR,
por isso o SENHOR o matou. Então disse Judá a Onã: Toma a mulher do teu irmão,
e casa-te com ela, e suscita descendência a teu irmão. Onã, porém, soube que
esta descendência não havia de ser para ele; e aconteceu que, quando possuía a
mulher de seu irmão, derramava o sêmen na terra, para não dar descendência a
seu irmão. E o que fazia era mau aos olhos do SENHOR, pelo que também o matou.
Então disse Judá a Tamar sua nora: Fica-te viúva na casa de teu
pai, até que Selá, meu filho, seja grande. Porquanto disse: Para que porventura
não morra também este, como seus irmãos. Assim se foi Tamar e ficou na casa de
seu pai.
Passando-se pois muitos dias, morreu a filha de Sua, mulher de
Judá; e depois de consolado, Judá subiu aos tosquiadores das suas ovelhas em
Timna, ele e Hira, seu amigo, o adulamita. E deram aviso a Tamar, dizendo:
Eis que o teu sogro sobe a Timna, a tosquiar as suas ovelhas. Então ela
tirou de sobre si os vestidos da sua viuvez e cobriu-se com o véu, e
envolveu-se, e assentou-se à entrada das duas fontes que estão no
caminho de Timna, porque via que Selá já era grande, e ela não lhe fora dada
por mulher. E vendo-a Judá, teve-a por uma prostituta, porque ela tinha coberto
o seu rosto. E dirigiu-se a ela no caminho, e disse: Vem, peço-te, deixa-me
possuir-te. Porquanto não sabia que era sua nora. E ela disse: Que darás,
para que possuas a mim? E ele disse: Eu te enviarei um cabrito do
rebanho. E ela disse: Dar-me-ás penhor até que o envies? Então ele disse: Que
penhor é que te darei? E ela disse: O teu selo, e o teu cordão, e o cajado que
está em tua mão. O que ele lhe deu, e possuiu-a, e ela concebeu dele.
E ela se levantou, e se foi e tirou de sobre si o seu véu, e
vestiu os vestidos da sua viuvez. E Judá enviou o cabrito por mão do seu amigo,
o adulamita, para tomar o penhor da mão da mulher; porém não a achou. E
perguntou aos homens daquele lugar, dizendo: Onde está a prostituta que estava
no caminho junto às duas fontes? E disseram: Aqui não esteve prostituta alguma.
E tornou-se a Judá e disse: Não a achei; e também disseram os homens daquele
lugar: Aqui não esteve prostituta. Então disse Judá: Deixa-a ficar com o
penhor, para que porventura não caiamos em desprezo; eis que tenho enviado este
cabrito; mas tu não a achaste.
E aconteceu que, quase três meses depois, deram aviso a Judá,
dizendo: Tamar, tua nora, adulterou, e eis que está grávida do
adultério. Então disse Judá: Tirai-a fora para que seja queimada. E tirando-a
fora, ela mandou dizer a seu sogro: Do homem de quem são estas coisas eu
concebi. E ela disse mais: Conhece, peço-te, de quem é este selo, e este
cordão, e este cajado. E conheceu-os Judá e disse: Mais justa é ela do
que eu, porquanto não a tenho dado a Selá meu filho. E nunca
mais a conheceu [= deitou-se com ela]” (Gênesis 38,1-26).
No relato acerca de Tamar e Judá: a) Tamar é estrangeira (Gênesis
38,1-2.6); b) seduzirá um parente varão – o sogro – vestindo-se como prostituta
(Gênesis 38,15-16); c) Tamar se prepara (tira suas vestes de viuvez) para
receber Judá e, através dele, do sogro, (Gênesis 38,14); d) dar continuidade à
linhagem de sangue que pertence a seu filho, Her, que morrera; (Gênesis
38,14.26); e) encontram-se em um lugar reservado na entrada de Enaim para terem
relações sexuais. Infira-se ao texto o fato de Judá estar consolado da morte da
esposa e envolvido na viagem com Hira para a tosquia das ovelhas, (Gênesis
38,12-18); f) momento que continha uma festividade, onde se beberia vinho
naturalmente (Gênesis 38,12), e Judá pode ter bebido antes de estar com Tamar
(CARMICHAEL, 1979, p. 76-78); g) Judá fará, posteriormente, a análise positiva
acerca de Tamar. (Gênesis 38,26)
O texto é bastante claro e nos mostra que Tamar seduz o homem a
quem ela escolhe para dar um herdeiro, sob o rigor da lei do levirato, cumprida
pelos hebreus – rito no qual o irmão (na falta deste um parente próximo) do
morto precisa ter relações com a viúva para suscitar descendência ao nome do
morto. Uma vez que Selá está vivo e não realiza o rito, Tamar permanece presa à
família de Judá pela lei. Por isso, ela age com o objetivo de tornar-se mãe. O
que essa mulher faz é usar as amarras patriarcais em seu próprio favor e ser
ancestral tanto da dinastia do rei David, quanto de Jesus. A originalidade
subversiva que ela demonstra ao enfrentar uma situação de sobrevivência é tanto
respeitada pelos homens que temem ao Deus de Israel, quanto abençoada pelo
próprio Deus (BRENNER, 2002, p. 172) e colocada como modelo de obediência na
fala do homem da cena, Judá (um detalhe: ele é bisneto de Abraão): “Mais justa
é ela do que eu...”. Este é mais um relato que nos desafia para repensarmos
como vemos a Antiguidade e os textos que nela eram produzidos, primeiro como
literatura oral, depois como registro escrito e arcabouço cultural de um povo.
Para não
concluir agora: porque essa questão precisa continuar...
Este breve estudo pretendeu apontar as características de textos
seletos do Antigo Testamento, a fim de assinalar algumas “mulheres virtuosas”
cuja construção literária aponta a força de um texto feminino e revolucionário,
no qual tais mulheres são caracterizadas como justas ou heroínas, o que se
expõe ainda mais quando essas mulheres são batalhadoras e/ou estrangeiras,
ainda que em uma cultura patriarcal. O que se pode perceber é que há um embate
contra esse domínio do masculino. Aí está a riqueza do texto bíblico. Ele é
compósito. Mas não deixa de registrar mulheres que não fugiram à luta e que não
são sexo frágil. Mulheres corajosas. Mulheres exemplares. Mulheres de valor.
Mulheres que têm vez e voz naquela sociedade, mesmo que hoje alguns “leitores”
façam uso dos mesmos textos e tentem de todos os meios calar a voz e tirar a
vez delas.
Vamos encerrar por ora com mais um texto antigo. Platão, na República,
demonstra-nos Sócrates (ou será a própria opinião de Platão?) falando do trato
e do respeito que deve ser dispensado às mulheres pelos homens. O filósofo
utiliza-se de seu argumento dos contrários, comparando tal tratamento aos
dispensados aos animais, colocando estes – machos e fêmeas – em posição de
igualdade, para que Glauco [o interlocutor do diálogo] reflita sobre a posição
das mulheres como seres iguais. Para tanto, indaga-lhe Sócrates:
“ – Está o trabalho dos cães dividido entre os sexos, ou ambos
participam igualmente da caça, do serviço de guarda e dos outros deveres
caninos? Ou será que confiamos exclusivamente aos machos o cuidado do rebanho e
deixamos as fêmeas em casa, na suposição de que os partos e a criação dos
filhotes seja ocupação suficiente para elas?
– Não – disse ele [Glauco] – fazem tudo em comum” (PLATÃO. República,
451d-e).
Platão, ainda, no mesmo livro, na continuação do diálogo de
Sócrates com Glauco, propõe que a mulher faça parte do quadro de guardiães da
cidade, pondo-a claramente, e não através de figuras, na mesma posição dos
homens:
“– Tanto homens quanto mulheres possuem as qualidades que fazem um
guardião, diferindo apenas quanto à força ou fraqueza relativa.
– Assim parece.
– E as mulheres que possuem tais qualidades devem ser escolhidas
como companheiras e colegas dos homens da mesma classe, aos quais se assemelham
pelo caráter e pelas aptidões?
– Evidentemente.
– E não convém dar os mesmos encargos às mesmas naturezas?
– Os mesmos.” (PLATÃO, República, 456a-b)
Se continuarmos procurando, tirando de nós nossas ideias
preconcebidas quanto às relações interpessoais da Antiguidade e o senso comum
de que “era assim mesmo naquela época o patriarcado em todo lugar”,
encontraremos uma série de exemplos que demonstram o respeito e a condição de
igualdade/paridade dada à mulher ao lado do homem. É possível mesmo que a
encontremos em posição de superioridade nas cosmologias e mitologias sumérias,
babilônicas, egípcias, gregas e romanas. Nosso objetivo, no entanto, no momento,
foi apenas aguçar e fazer brotar reflexões sobre o tema no intuito de iniciar
pesquisas mais profundas. Mas para tal, é imprescindível retirarmos os “óculos”
dos discursos construídos ao longo da história, que carregam em seu bojo
preconceitos e desigualdades, e inserirmo-nos nas teias relacionais das
sociedades que queremos pesquisar de modo sério, com total lisura e rigor
acadêmico.
Referências
biográficas
Dra. Alessandra Serra Viegas professora da Secretaria de Educação
do Estado do Rio de Janeiro e do Seminário Metodista César Dacorso Filho.
Referências
bibliográficas
ALONSO
SCHÖKEL, L. Dicionário bíblico hebraico-português. Trad.: Ivo Storniolo, José Bortolini. São Paulo: Paulus, 1997.
BACCEGA, M.
A. Palavra e discurso – história e literatura. São Paulo: Ática, 1995. (Série
Princípios).
BAILLY, A. Dictionnaire grec-français.
Paris: Hachette, 2000.
BIBLIA. Grego. Septuaginta. Stuttgart:
Deutsche Bibelgesellschaft, 1979.
BÍBLIA.
Hebraico. Biblia Hebraica Stuttgartensia.
4. ed. enend. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellchaft, 1990.
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada.
São Paulo: Paulus, 2002.
BRENNER, A.
A Mulher Israelita: Papel Social e Modelo Literário na Narrativa Bíblica. São
Paulo: Paulinas, 2001.
BRENNER, A. (org.). Rute a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2002,
CARMICHAEL, C. Women, Law and the Genesis: Traditions, Edinburg:
Edinburg University Press, 1979.
LAFFEY, A.
Introdução ao Antigo Testamento – perspectiva feminista. São Paulo: Paulus,
1994.
LIMA, M. L. C. Exegese bíblica: teoria e prática. São Paulo:
Paulinas, 2014.
PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.
9ª. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
Amei! Parabens!!
ResponderExcluirMuito obrigada! Estou à disposição para contribuições e perguntas!
ExcluirPrimeiramente, parabéns pelo seu trabalho. Você conseguiu atingir bem seus objetivos e conectar os estudos sobre as mulheres na Antiguidade de forma muito didática e possível de ser discutida em sala de aula. Minha pergunta tem conexão com o texto, mas extrapola um pouco. Se é de seu conhecimento, gostaria de saber o que você acha sobre a representação das mulheres nas produções cinematográficas ou telenovelas (principalmente brasileiras) que tem como pano de fundo temas relacionados à Bíblia?
ResponderExcluirMateus Delalibera
Mateus!!!
ExcluirMuito obrigada por sua contribuição comentando o texto!
Sobre a pergunta, vamos lá: a meu ver, a representação das mulheres no cinema e nas telenovelas relacionadas aos temas bíblicos parece seguir o modelo patriarcal e, quando a mulher "sai da caixinha", um jogo de oposição masculino/feminino parece acontecer aos olhos do espectador. Não se vê um modelo paritário, tampouco uma mulher elogiada por seu valor (elogios geralmente são somente por beleza física).
Extrapolando também um pouquinho: outro fato que incomoda bastante e está muito fora da realidade das características étnicas, é uma Cleópatra representada por Elizabeth Taylor no cinema, e telenovelas representando mulheres do Egito que não são negras. Essa tentativa de embranquecimento e europeização do Egito, propositadamente deslocando-o do norte da África também precisa figurar nas aulas de História Antiga para discussão e reflexão com os estudantes.
Olá Alessandra, sua pesquisa está excelente. Gostaria de saber, sua visão a respeito da imagem da mulher na sala de aula, mais especificamente no livro didático. Seria possível na sua opinião, levar as mulheres citadas no texto para um trabalho no qual englobe a questão feminina na história em sala de aula?
ResponderExcluirJayza Monteiro Almeida
Olá Jayza!
ExcluirMuito obrigada!
Os livros didáticos sempre procuraram reproduzir a fala dominante da sociedade ou o senso comum, isto é, poucas mulheres têm vez e voz. E ao falar da bíblia então, o pensamento é retrógrado ou coisa pior. Por isso, eu quis escrever este texto. Creio que seja plenamente possível trabalhar com ele e com estas mulheres em uma discussão em sala de aula. Assim como falar de outras mulheres da Antiguidade, na Grécia e em Roma, por exemplo.
Olá Alessandra,
ResponderExcluirGostei do teu texto, e queria te perguntar sobre uma maneira que você sugere de levar essa discursão para a sala de aula, qual seria a melhor forma?
Rafaela Lima de Souza
Olá Rafaela!
ExcluirMuito obrigada!
Creio que uma conversa anterior com os estudantes seria importante. Alguns poderiam levar bíblias católicas ou protestantes e, a partir daí, começar por uma leitura aberta dos textos.
Ao mesmo tempo, poderia deixar que eles falassem se conhecem textos religiosos ou com elementos mitológicos em que se vê a paridade masculino/feminino. Tais textos também poderiam ser levados para discussão. Esse seria um começo interessante!
Olá Alessandra
ResponderExcluirParabéns pelo seu trabalho, ótima essa abordagem sobre a mulher nos textos bíblicos. Após esse trabalho mostrando como a mulher é exaltada nos textos bíblicos, gostaria de saber qual é seu pensamento sobre a sexualização da mulher na "cultura' atual brasileira, principalmente nas letras de musicas da nova geração de artistas?
Olá Fernando!!!
ExcluirMuito obrigada!!!
Excelente sua pergunta! Creio que a exacerbação da questão física do corpo feminino e essa sexualização, como você bem colocou, é resposta ao que estamos vivendo no microcosmo já há algum tempo. Aquelas mães que diziam: "guardem suas cabras que meu bode está solto!"; os filmes americanos em nossas tvs que mostravam as festinhas de escolas e faculdades; os filmes brasileiros com muito nu feminino, os comerciais de cerveja colocando-a "tão gostosa" quanto a mulher e por aí vai... assim, o que temos hoje parece ser a replicação de tudo isso. Unido, é claro, à desvalorização da mulher como ser pensante e dotado de opinião.
Boa noite Alessandra,
ResponderExcluirAcredito que esse estudo e abordagem desse tema, pode ser relevante, na sociedade atual contemporânea, gostaria de saber como vc ver a mulher atual do século 21, no contexto social.
Boa tarde Mara!
ExcluirMuito obrigada!
Vejo a mulher do século 21 muito semelhante à mulher de Provérbios 31 no que diz respeito à jornada dupla ou tripla. Uma mulher forte que trabalha dentro e fora de casa, lutando o tempo todo. A diferença é a falta de valorização da nossa sociedade que está em contato essa mulher.
ola Alessandra
ResponderExcluirGostei muito a maneira como você abordou esse tema no seu texto, a mulher moderna apesar de ter conquistado muitos direitos, ainda sofre com preconceitos, gostaria de saber quais suas perspectivas, no que si refere a direitos da mulher e como podemos conquista mais espaço, sem perdermos a essência da mulher que é exposto no texto.
Olá Mara!
ExcluirMuito obrigada por esta segunda colocação sua!
Creio que nossas leituras precisam mudar. Nossa forma de interpretar o que lemos. Nossa hermenêutica dos textos. Assim como eu tirei esses exemplos da bíblia para trazer reflexão, muitos tiram textos da mesma bíblia para opressão e escravização. Assim como algumas cenas do filme "O livro de Eli".
Somos professores e formadores de opinião. Por isso precisamos ler os textos e libertar nossas mentes e as mentes dos estudantes através de uma reflexão crítica de tudo que lemos. Há muitos textos da Antiguidade que permitem isso: ver mulheres à frente do seu tempo. Busque esses textos e leve para a sala de aula! Mesmo que seja virtual!